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Subject: Santo António Champalimaud


Author:
MÁRIO MESQUITA
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Date Posted: 09:38:28 05/17/04 Mon


Quase toda Imprensa portuguesa se converteu, esta semana, a um velho e sagrado género: a hagiografia, ou seja, a escrita de obras sobre a vida dos santos. Alguns jornalistas e cronistas envergaram as vestes de hagiógrafos para redigirem, com a devida piedade, o perfil biográfico de Santo António Champalimaud.

Confesso a minha impreparação para avaliar as possibilidades de sucesso de uma eventual proposta de beatificação do industrial. Não tive ocasião de conhecer a pessoa, nem estudei suficientemente o perfil. Pior: pela leitura das múltiplas páginas publicadas após a sua morte verifiquei que a maior parte das minhas ideias a respeito do famoso capitalista, quiçá provenientes de rumores ou de preconceitos ideológicos, eram falsas. "Mea culpa".

Aos olhos de muitas pessoas da minha geração, Chapalimaud representava, o mais típico industrial da era salazarista, mandão e prepotente, que construíra o seu império cimenteiro e bancário à sombra da protecção que lhe conferia a legislação proteccionista do "condicionamento industrial" e os instrumentos ditatoriais do regime, desde a ausência de liberdade sindical e do direito à greve até à prestimosa acção da polícia política na repressão dos movimentos sindicalistas.

As hagiografias jornalísticas desmentem esta visão. Champalimaud não era adepto de nenhum Governo, teria sido, sempre, um homem do "contra". Manifestava, claro está, as suas preferências, que se exprimiam, a fazer fé nas narrativas, mais pela negativa do que pela positiva. Alguém sustenta mesmo que desafiou dois regimes. Admirava o ditador Salazar e detestava Marcelo Caetano, que pretendia liberalizar o regime. Abominava, naturalmente, o 25 de Abril, em seu entender "a maior desgraça da História de Portugal".

milagres@económicos.pt

Seriam estes motivos suficientes para fazer o "santo"? À primeira vista, se a santidade se expressa através de milagres, poderia argumentar-se com a ausência de fenómenos desse tipo nos relatos da imprensa. Mas, uma segunda leitura, mais atenta, pode revelar indícios do sobrenatural, quando, por exemplo, se afirma que - exilado no Brasil, após o 25 de Abril -foi compelido a começar tudo de novo. Como se partisse do nada, à semelhança do emigrante que se instala em país longínquo, sem outro pecúlio que não seja o da sua força de trabalho. Aqui estaria, obviamente, o milagre económico, susceptível de comover os teólogos do Vaticano, caso desconhecessem que, desde o final dos anos 60, Champalimaud se instalara em Minas Gerais no ramo dos cimentos. "Começar do zero" é obviamente uma metáfora, figura de estilo aqui tornada pertinente pela extensão da fortuna do industrial.

O mau feitio de António Champalimaud, pessoa "irascível", ao que revelam as crónicas, poderá ser, certamente, atenuado através da invocação da famosa cena bíblica em que Jesus Cristo expulsa os vendilhões do templo. A diferença é que, neste caso, ao contrário do que sucede no Novo Testamento, a indignação ética coloca, do mesmo lado da barricada, o moralista e o homem de negócios. Tanto quanto se deduz, nas linhas ou nas entrelinhas, os alvos da "justa ira" do empresário seriam, por via de regra, os políticos, desde Marcelo Caetano aos representantes eleitos da democracia portuguesa. Numa dos textos, já não sei qual, referem-se apenas duas excepções, relativas a figuras consideradas da mesma têmpera do antigo proprietário da Siderurgia Nacional: Salazar e Cunhal. Um e outro, mau grado a enorme distância ideológica que os separava seriam homens fiéis a si próprios e semelhantes ao industrial na integridade dos seus propósitos e na indiferença a qualquer ideia democrática. Champalimaud, Salazar e Cunhal - nesta tríade vai todo um programa de reedificação nacional, com o dirigente do PCP a servir de contraponto no exílio ou na prisão...

Nalguns relatos, fica-nos a ideia de que Champalimaud personifica a virtude dos grandes criadores de riqueza enquanto "os políticos" encarnam as fraquezas dos predestinados a destinos cinzentos. Não se sabe se, neste capítulo, se devem incluir, na sábia opinião dos hagiógrafos, os políticos que, na década de 90, em pleno "cavaquismo", lhe permitiram readquirir poder financeiro em Portugal, não só através da indemnização pelos bens nacionalizados em 1975, mas também ao avalizarem os avultados empréstimos da Caixa Geral de Depósitos que lhe permitiram adquirir a maioria na seguradora Mundial Confiança e os Bancos Pinto e Sotto Mayor, Totta e Açores e Crédito Predial Português.

Este poderá ser considerado o "segundo milagre" ou o "milagre da reincarnação lusitana", a que se seguiria, pouco depois, a alienação dos bancos readquiridos por Champalimaud ao espanhol Santander, numa operação controversa, "embargada" pelo ministro das Finanças, Sousa Franco, em circunstâncias consideradas legalmente questionáveis pelos eurocratas de Bruxelas. Para um patriota à antiga, o negócio afigura-se, no mínimo, discutível. Mas, presume-se, ao homem de negócios convém distinguir os planos: invoca a moral quando o querem importunar com os negócios e concede prioridade aos negócios quando o pretendem embaraçar com a moral.

heróis@santos.com

A cada época, os seus santos e os seus heróis. Quando o Cristianismo era perseguido pelo Estado, na Roma antiga, eram beatificados os que se opunham o poder. Quando, após a época Constantina, a Igreja recebeu protecção do poder político, mudaram os critérios de beatificação.

Na democracia portuguesa, os heróis oscilam ao sabor daquilo que podemos designar pelas ondas do pós-moderno. Basta folhear as revistas "cor-de-rosa" para vermos a desfilar as ambíguas figuras propostas à identificação dos leitores. Execrados nos anos revolucionários de 1974-76, os empresários possuem, agora, a melhor Imprensa possível.

Seria, contudo, lógico presumir que o perfil dominante no homem de negócios do início do século XXI se distinguisse com nitidez, por traços de modernidade, eficiência e trato democrático, do daguerreótipo do cavalheiro da indústria autoritário, formado nos quadros mentais da primeira metade do século XX.

Será assim? A produção hagiográfica acerca de Santo António Champalimaud indica que, sob o manto diáfano do empresário pós-moderno, subjaz o arquétipo do patrão-tipo da época salazarista. Mesmo sabendo que não é previsível ressuscitá-lo, em todo o seu esplendor, no século XXI, permanece vivo o sonho do tempo em que a autoridade patronal e a autoridade do Estado confluíam a bem da economia pátria.

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