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Subject: A Democracia Está a Suicidar-se Todos Os Dias


Author:
Eduardo Dâmaso entrevista José Saramago
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Date Posted: 21:50:02 04/05/04 Mon

A Democracia Está a Suicidar-se Todos Os Dias
Sábado, 03 de Abril de 2004
Eduardo Dâmaso

"Ensaio sobre a Lucidez", lançado esta semana por José Saramago, é um livro polémico que está a ultrapassar a sua dimensão ficcional e a transformar-se em objecto de discussão política.

O autor parte de uma espécie de rebelião cívica - 83 por cento eleitores votam em branco nas eleições realizadas na capital de um país imaginário -, para pôr o poder político a desencadear um ciclo de repressão.

O voto em branco é a principal personagem de um livro que Saramago quer que lance o debate em torno de uma questão central: e, se um dia o voto branco sobe muito, o que é que a democracia faz?

Provocatório, o livro e o autor deixam um alerta sobre os males da democracia, os poderes opacos que a condicionam, um libelo acusatório fortíssimo contra os políticos, o aviso de que há um elemento anárquico a introduzir-se no tecido social e político.

O Mil Folhas entrevistou Saramago no dia do lançamento do seu "Ensaio sobre a Lucidez".

Mil Folhas - Este livro tem sido interpretado como um ataque à democracia que temos. É assim?

José Saramago - A primeira coisa que devemos apurar é se temos alguma democracia... O que pode estar a acontecer com este livro é esquecer que ele é uma obra literária e ficar-se pelas questões puramente políticas...

P. - Ou seja, ser interpretado como um ensaio político e não como uma ficção...

R. - Se há realmente um risco que o livro seja visto como uma abordagem política da situação em que vivemos, espero que os leitores descubram algo mais. O leitor extrairá do livro aquilo que mais lhe toque.

P. - Pode este livro ficar preso à dimensão política que o José Saramago indiscutivelmente tem?

R. - Não sei... O futuro vai resolver isso. O "1984", do Orwell, é um livro profundamente político, mas não deixa de ser também uma obra literária. Aquilo que eu não entendo é que a presença de alguns aspectos de análise política numa obra literária sejam entendidos como desvalorização da própria obra literária. Como se a obra literária tivesse que ser uma coisa intocada, posta na estratosfera e onde as contaminações terrestres não chegariam.
Toda a pessoa que eu sou reage ao tempo que é o seu. Na realidade, hoje não há mais política. Lendo os jornais, vendo a televisão, não se pode dizer que vivamos um tempo da política; o que há é demasiados políticos. Pode ser que haja demasiada política neste livro, mas ao menos tem uma vantagem: não há lá políticos. Há lá um governo, há lá ministros...

P. - Há neste livro políticos impiedosamente retratados.

R. - Os políticos estão ali porque, enfim, não se pode viver sem eles. E, se é certo que de um modo geral o comportamento deles é negativo, eu também não tenho a culpa que na realidade as coisas sejam sempre ou quase sempre mais ou menos assim.

P. - Há quem veja neste "Ensaio sobre a Lucidez" uma tentativa de actualização de um pensamento marxista-leninista datado, contra o imperialismo norte-americano, as multinacionais...

R. - Se as minhas críticas não servem porque estão contaminadas por resquícios do passado, não percam demasiado tempo com elas. Façam as suas próprias críticas, de outros pontos de vista. Se podem concordar que este sistema tal como está não serve, então deixem que eu use os meus instrumentos de análise, supostamente desactualizados, e entrem com ideias novas, de agora mesmo, fresquinhas, a saltar, para fazer aquilo que eu estou a tentar fazer muito mais do ponto de vista do senso comum.
O que me parece que há em mim é uma boa dose de senso comum e não o retomar desse ângulo de visão sobre a realidade. Quando se fala de imperialismo norte-americano, parece que se tornou muito mais patente aquilo que era verdade então e que é verdade total agora, escandalosa. Pergunto: quantos países têm bases militares dos Estados Unidos? Em quantos países não têm os Estados Unidos bases militares? Se me acusam de passadismo, pergunto: e o seu presencismo como se manifesta?

P. - "Ensaio sobre a Lucidez" não é comparável com "Levantado do Chão", mas este, apesar da forma como o trabalhou, enraizando-se na realidade alentejana durante algum tempo, pode ser visto como um livro mais agarrado a uma lógica ficcional do que este "Ensaio sobre a Lucidez", mais próximo do discurso ensaístico?

R. - É possível que sim. O "Evangelho segundo Jesus Cristo" fechou um ciclo. Eu não era consciente disso, mas fechou um ciclo que deu lugar a outro, iniciado com o "Ensaio sobre a Cegueira". Não tive a consciência que estava a começar uma fase diferente. Só comecei a aperceber-me disso com "Todos os Nomes".
Digamos que, neste momento, me preocupo mais com a imediatez dos factos da vida de hoje. Estou mais atento ao que influi directamente em nós, em cada instante da nossa vida pessoal e colectiva. Portanto, todos esses livros vão por aí, não da mesma maneira - "Todos os Nomes" não vai por aí tanto, mas outros sim, "A Caverna", o "Ensaio sobre a Cegueira", agora este...
Eu não quero dizer que os outros pudessem entrar numa categoria mais intemporal, no sentido de estarem menos ligados ao imediato. Mas a sociedade mudou muitíssimo. Que outro "Levantado do Chão" é que eu poderia escrever hoje? Se me pusesse a trabalhar outra vez sobre o Alentejo, penso que a história que teria de contar, para ter alguma correspondência com a realidade, no fundo não se afastaria muito do "Ensaio sobre a Lucidez". Os problemas são hoje de tal ordem...

P. - O "Ensaio sobre a Lucidez" exprime uma melancolia ou uma angústia democrática?

R. - Melancolia não há nenhuma! Nem sequer lhe queria chamar angústia, mas antes uma ira, uma espécie de raiva... Porque é que isto é assim? E porque é que isto é assim com a complacência, a condescendência, a resignação, a apatia, não direi de todos, mas de uma maioria, que pensa ou que foi levada a pensar que isto é assim pela simples razão de que tinha que ser assim...

P. - Em Espanha, os eleitores foram em massa votar, não em branco, mas penalizando um partido e dando o poder a outro. Não acha que a ideia do voto em branco vai em contra-vapor?

R. - Não acho que vá em contra-vapor, porque a mim satisfaz-me muito que o que resulta das eleições em Espanha, e agora em França, tenha sido aquilo que foi e que isso só tenha sido possível por uma movimentação do eleitorado com ideias claras sobre quem queria que estivesse no poder. Agora, na verdade, isso parece em contradição com algo que, diga-se, eu não defendo - eu não defendo o voto em branco. O que se trata é do seguinte: votando a Espanha como votou, tirou um governo e pôs outro. Mas o futuro dirá até que ponto isso se vai traduzir em diferenças substanciais na vida pessoal e colectiva dos nossos vizinhos. Sabemos, por exemplo, o que é que está a acontecer no Brasil. Eu não vou cair naquela coisa banal de dizer: uma coisa são as promessas, outra bem diferente são as realidades. Há momentos em que as pessoas acham que as coisas têm que melhorar e como eleitores que são vão fazer o possível. Depois é que se vai ver se mudou ou não. Há realidades que estão muito por cima das intenções honestas - ninguém está aqui a pensar que os políticos só querem enganar-nos -, mas a verdade é que está aí o FMI, está aí o Banco Mundial. O fantasma que está ao lado do Lula é o FMI.

P. - São então esses os poderes fácticos que condicionam os projectos políticos?

R. - Isso é o mais óbvio! Nós não podemos fazer nada mais do que tirar um governo e pôr outro.

P. - Mas isso já é muito.

R. - É muito, mas não é o suficiente. Se o poder real está noutro sítio... Admitir-se-ia que algum governo pusesse aí fora, por iniciativa sua, umas quantas leis que encaminhariam para o emprego precário? Uma iniciativa que, fazendo parte do programa de governo, das propostas eleitorais, dissesse: "Vamos produzir uma legislação que conduzirá à precariedade do emprego." Seria assombroso que, com uma proposta dessas, o partido que se atrevesse a semelhante barbaridade ganhasse as eleições. Isso só pode significar uma coisa: que a precariedade do emprego foi decidida e imposta noutro sítio, na área empresarial, da grande indústria e do grande comércio. E os governos preparam as leis para que isso não só se aplique, como acabe por ser considerado natural.

P. - Acha então que vivemos uma fase em que a omissão e a mentira foram erigidas em instrumentos essenciais de uma relação política com o eleitorado?

R. - A mentira normalizada! A mentira instituída! Lembro-me, e tenho pena que lhe tivessem saído a ele essas palavras pela boca fora, que o António Guterres disse aí por volta de 1996 ou 1997 que "a política é a arte de não dizer a verdade". Isto é verdade, mas não esperava ouvi-la da boca de um primeiro-ministro. O pobre cidadão fica esmagado debaixo dessa declaração. Se a política é a arte de não dizer a verdade, então o que é que eu, cidadão, faço nesse quadro? Veja-se a guerra do Iraque, que é a sublimação da mentira como norma prática da relação entre o poder e os cidadãos.

P. - O sinal que os eleitores espanhóis deram é ou não um sinal de esperança na inversão desse estado de coisas?

R. - Eu creio que sim, sobretudo porque em boa parte a vitória do PSOE vem dos novos eleitores...

P. - E que os partidos têm grande dificuldade em enquadrar...

R. - O que se passou em Espanha foi uma revolução. Aquela mobilização pelo telefone móvel começou numa pessoa. Só pode ter começado numa pessoa... A difusão das mensagens numa espécie de progressão geométrica imparável cobriu em poucas horas toda a Espanha. Os partidos não tiveram nada que ver com isso. Uns não fomentaram e outros não puderam impedir. Isso é realmente uma revolução. Eu sei que agora temos dificuldade em pôr a palavra revolução sobre determinadas acções, porque parece mal, mas a verdade é que cada tempo faz as suas próprias revoluções e não tem de repetir as revoluções de outros tempos.

P. - Que vai mudar a face da política daqui para a frente?

R. - Pode mudar muitas coisas. No fundo, há uma espécie de elemento anárquico que sinto que se está a introduzir muito explicitamente no tecido social e político.

P. - Que tem empurrado o poder político institucional para comportamentos menos apropriados?

R. - É verdade, mas também significa uma espécie de desespero, porque não sabem como introduzir elementos correctivos sem cair na ocultação de informação, na manipulação ou, até, na repressão.

P. - O que aconteceu em Espanha foi uma antecipação desta lógica de protesto pelo uso do voto abordada pelo seu livro, ainda que tenham tido expressões diferentes nas urnas?

R. - De algum modo. Esta ideia do voto em branco tem de ser assumida no debate político. Nestas eleições espanholas houve mais de 600 mil votos em branco. Imagine o peso que esses votos em branco teriam, se se tivesse unido a um dos dois principais partidos ou mesmo à Esquerda Unida!?
O voto em branco já pesa hoje e pesará amanhã. E não venham dizer que o voto em branco não é democrático. A questão que eu coloco é: e se amanhã sobe? E se amanhã sobe de uma maneira que torne o voto em branco uma presença outra no quadro político de um país?
Então, é preciso saber por que é que as pessoas votaram em branco. Porque gostariam que houvesse um outro partido que não há, então votam assim? Ou também porque consideram que isto não serve? Por estas palavras simples: isto não serve. E, como não têm outro modo - o quadro político-ideológico está definido e não aceita que algo se manifeste fora do sistema -, então as pessoas dizem: "Voto em branco." Até que por sermos tantos a votar em branco, embora eu tenha que dizer que nunca votei em branco em toda a minha vida, se note que alguma coisa estamos a tentar dizer. Não se pode desvalorizá-lo, porque as pessoas que votam em branco estão a dizer: "Eu vou votar, existo, sou cidadão, e venho aqui votar porque não estou contente com isto."

P. - Vistas as coisas desse modo, os 83 por cento de voto em branco no seu livro podem introduzir, no limite, um factor de recusa do próprio sistema democrático e não temos alternativa.

R. - Não teremos alternativa ao sistema, se não colocarmos a necessidade de o mudar. E se o voto em branco diz que quer mudar o sistema - se amanhã, em vez de um por cento, passar a ser 15 ou 20, 30, 40, 50, 83 como no meu livro -, alguma coisa há que fazer. Há que regenerar o sistema... Atenção, o meu livro não faz a propaganda do voto em branco. O que é que o poder faz num caso desses?

P. - No seu livro há uma resposta clássica que é a repressão.

R. - Oxalá que uma coisa dessas não acontecesse. Mas se subitamente, sem se perceber porquê nem como, porque no livro também não tento dar qualquer tipo de explicação para os 83 por cento de voto em branco, ele aumentar muito, o que faz o poder? Eu creio que é muito difícil estar satisfeito com um sistema que a si próprio se denomina democrático, quando nós sabemos que o poder real neste mundo não é democrático.

P. - No fundo, esta hipótese de rebelião democrática...

R. - Pode chamar-lhe assim!

P. - ... esta ideia de rebelião, no fundo, é um protesto contra aquilo a que Manuel Vásquez Montalbán, a quem dedica o livro, dizia ser a dupla moral, dupla verdade, dupla contabilidade do poder.

R. - Exacto, exacto. Há outro nome para isso que é hipocrisia social, hipocrisia política, hipocrisia ideológica. Tudo isso tece a rede da mentira. Ou é a mentira mãe da hipocrisia, ou é a hipocrisia mãe da mentira. São unha com carne.

P. - Porém, numa democracia posso apontar o dedo ao poder político através da minha opinião e do voto. Viu-se nos últimos dias em Espanha e em França. Nas ditaduras não o posso fazer. Em Cuba não o posso fazer. Como vê hoje a situação cubana?

R. - Vejo como via antes. Mas se você me pergunta: vê a acção do voto em branco aplicada a Cuba? Com certeza, não é excepção!

P. - Sim, mas não é possível!

R. - Como é que não é possível? Claro que sim! Há eleições em Cuba, que não vou discutir agora...

P. - Considera as eleições em Cuba democráticas?

R. - Eu não considero nada! Nunca as vi! Não sei o que é que se passa. A única coisa que sei que se passa é o seguinte: os cidadãos vão pôr um papel nas urnas e isso é votar. Democrático ou não, isso é votar, ainda que tivéssemos de discutir se as pessoas foram impelidas, arregimentadas, se foram assim, se foram assado.

P. - Mas é um regime de partido único.

R. - Obviamente, mas vamos lá ver... Também não sei como é que são os boletins de voto em Cuba. Em Espanha vota-se em branco tirando a lista de dentro do sobrescrito e metendo na urna o sobrescrito vazio. Aqui [Portugal] não se preenche o voto em branco. Em Cuba não sei como é. Se a lista se apresenta como lista única... talvez não seja possível votar em branco. Não sei... A única coisa que provavelmente se pode fazer é anular o voto. Nesse caso o voto nulo seria equivalente ao voto em branco... mas não sei!

P. - Como é que vê a situação dos dissidentes cubanos presos, Daniel Rivera e todos os outros?

R. - Eu, nessa altura, declarei que dissentir é um direito humano. E creio que com esta palavra respondo a tudo. E mais: disse que dissentir é um direito que está escrito com tinta invisível em todas as Constituições políticas do mundo. Se não tivéssemos dissentido no tempo do fascismo, como é que era!? Agora, e sem fazer juízos de valor, se dissentir é entrar em colaboração ou em cooperação com o inimigo, o que não creio... enfim, o que declaro muito redondamente é que não é legítimo confundir toda a dissidência com traição.

P. - O que se passou nos últimos tempos em Cuba, com as execuções e as prisões de dissidentes, dissipou todas as esperanças, mesmo dos sectores de esquerda que ainda mantinham alguma simpatia pela revolução cubana.

R. - Não sei... A única coisa que direi é que gostaria muitíssimo que isto não tivesse acontecido. E, se aconteceu, parece-me, já o escrevi, é altamente negativo.

P. - Afinal, o que seria para si uma boa democracia?

R. - A questão é esta: seria boa uma democracia que não se limite a ser formal e queira ser substancial. A democracia tem três pilares: democracia política, democracia económica e democracia cultural. E qual é a que está funcionando e mal? É só a democracia política nesse ritual a que chamamos eleições, votação, liberdade de formação de partidos - como se a única maneira de organizar a vida de um país tivesse de passar necessariamente pela existência dos partidos...

P. - Está contra os partidos?

R. - Não estou a dizer que não devam existir. O que estou a dizer é que eles não têm o monopólio da vida política.

P. - A democracia está a criar uma fractura social muito grande que a pode ameaçar?

R. - Acho que sim. Acho que a democracia se está a suicidar a cada dia que passa. Eu creio que isto toda a gente sabe. Porque quem manda não são os políticos, mas os poderes opacos que os lá põem, porque se fala só de políticos e não se fala, não se questionam, as políticas. Fica-se pela superficialidade da mercearia política, quando a política se deveria transformar na arte de dizer a verdade.

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Re: A Democracia Está a Suicidar-se Todos Os DiasJoão Lopes22:36:24 04/06/04 Tue


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