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Date Posted: 16:03:11 01/28/02 Mon
Author: José Maria
Subject: A invenção da memória nos arquivos públicos

A INVENÇÃO DA MEMÓRIA NOS ARQUIVOS PÚBLICOS (PARTE I)

José Maria Jardim

Resumo

O conceito/noção de memória norteia diversas práticas de constituição do patrimônio documental por parte dos arquivos públicos. Este processo é configurado na arquivologia pelo conjunto de técnicas identificadas como avaliação e seleção de documentos. Tais técnicas, porém, tendem a não referir-se, de forma verticalizada, aos pressupostos e implicações teóricas do conceito/noção de memória. No Brasil, este processo adquire matizes específicos, considerando-se a periferização dos arquivos públicos em relação ao Estado e à sociedade.

Palavras-chave

Arquivologia; Memória; Avaliação de documentos; Arquivos públicos; Políticas arquivísticas.

Este artigo procura remeter para o campo dos arquivos públicos algumas reflexões sobre o tema da memória e seus lugares.
Tratou-se de observar como a noção/conceito de memória tende a ser teoricamente referida, quando do processo de avaliação e seleção de documentos arquivísticos, como um dos pilares da arquivologia contemporânea. A este processo e seus determinantes teóricos encontra-se vinculada, por princípio, a constituição dos acervos permanentes/históricos dos arquivos públicos. Estes escolhem, mediante tais diretrizes, documentos considerados socialmente relevantes a ponto de se justificar a sua preservação permanente. Buscou-se, portanto, visualizar o processo de avaliação de documentos à luz da sua racionalidade como recurso técnico, considerando-se também a sua dimensão política.
Verificou-se ainda o percurso histórico dos arquivos e da arquivologia, considerando-se algumas especificidades do caso brasileiro. Priorizaram-se os arquivos públicos, dada sua trajetória como territórios nos quais são fundadas essas experiências, configurando-se como bases da sua teorização. Paralelamente, levaram-se em conta as implicações de ser o Estado um agente protagonista neste processo. Tomaram como base empírica alguns textos representativos da literatura arquivística internacional e nacional sobre o tema nos últimos 40 anos.

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO/CULTURAL

Recorre-se atualmente, com muita freqüência, à temática da memória, expressão de interesses e paixões e objeto de um campo interdisciplinar. Diversos termos tendem a ser associados à memória: resgate, preservação, conservação, registro, seleção etc. Neste sentido, a memória parece visualizada sobretudo como dado a ser arqueologizado e raramente como processo e construção sociais.
Le Goff (1984) sugere algumas teses a respeito da memória:
. sua crucialidade, expressa em noções que se remetem mutuamente: tempo e espaço, suporte e sentido, memória individual e coletiva, tradição e projeto, acaso e intenção, esquecimento e lembrança etc.;
. as diferenças de natureza entre sociedades com escrita ou não, influindo na construção social da memória;
. as diferentes memórias ao longo da história;
. a memória como fonte de identidade individual e de uma dada sociedade;
. a memória como objeto de luta das forças sociais pelo poder.
Para Nora (1993, p.15 ), a memória verdadeira, transformada por sua passagem em história, dá lugar a uma memória arquivística, ou seja, “à constituição vertiginosa e gigantesca do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar.”
Neste quadro, há lugares para esta memória porque não há mais meios de memória. Estes lugares da memória são simultaneamente materiais, simbólicos e funcionais. Procuram escapar da história, sendo sua razão fundamental “parar o tempo, bloquear o trabalho de esquecimento, fixar um estado de coisas” (ibid.).
Em uma sociedade marcada pelo “produtivismo arquivístico”, o vestígio é sacralizado, constituindo-se o arquivo “como a secreção voluntária e organizada de uma memória perdida, mas não o saldo mais ou menos intencional de uma memória vivida” (ibid.).
Para Lowenthal (1989), memória, história e relíquias constituem metáforas mútuas, “rotas cruzadas em direção ao passado”, fontes de conhecimento. A memória, ao contrário da história, não seria um conhecimento intencionalmente produzido. É subjetiva e, como tal, um guia para o passado, transmissor de experiência, simultaneamente seguro e dúbio. Sua primeira função “não é preservar o passado, mas adaptá-lo, enriquecendo e manejando o presente”, não se constituindo, portanto, “ em uma reflexão pronta do passado, mas reconstruções seletivas e ecléticas baseadas em ações subseqüentes, percepções e códigos maleáveis pelos quais nós delineamos, simbolizamos e classificamos o mundo.” (ibid., p.194, tradução nossa). A memória é, portanto, processo , projeto de futuro e leitura do passado no presente. Considerando o objeto deste trabalho, vale observar a noção de relíquias na perspectiva de Lowenthal:
- relíquias não são processos, mas resíduos de processos;
- nenhum objeto físico é um guia autônomo para os tempos antigos: ele ilumina o passado quando já
sabemos que esta relíquia pertence a este passado;
- toda relíquia existe simultaneamente no passado e no presente;
- relíquias requerem interpretação para expressarem seu papel de relicário;
- um passado sem relíquias tangíveis parece muito tênue para ter credibilidade;
- pela interpretação de relíquias, a história elabora e amplia a memória.
É possível encontrar na noção de relíquias uma aproximação com a de suportes da memória. Le Goff (1984) menciona os documentos e monumentos como materiais da memória coletiva, diferenciando-os em função de suas características. Assim, os monumentos apresentam alguns atributos específicos:
- são herança do passado;
- evocam o passado, ligando-se ao poder de perpetuação voluntária ou involuntária das sociedades
históricas;
- apresentam uma intencionalidade.
De outro lado, os documentos apresentam uma objetividade que se opõe à intencionalidade do monumento. Constituem uma escolha do historiador, triunfando sobre o monumento a partir do positivismo, no século XIX, quando adquire o sentido moderno de testemunho histórico.
A crítica à noção de documento pela Escola dos Annales possibilita a tese de que a sua utilização pelo poder transforma-o em monumento. Assim, ressalta Le Goff:
- cabe reconhecer em todo o documento um monumento;
- não existe um documento objetivo, inócuo, primário;
- o documento é monumento: resulta do esforço de sociedades para impor ao futuro - voluntária ou
involuntariamente - determinada imagem de si próprias;
- no limite, não existe um documento-verdade; todo documento é mentira;
- ao mesmo tempo verdadeiro e falso, porque, um monumento, todo documento é antes de tudo uma
montagem que deve ser desmontada, uma construção a ser desestruturada, analisando-se as suas
condições de produção,
- o documento-monumento deve ser estudado como um instrumento de poder.

A partir do século XIX, no interior do projeto de Estado Nacional, desenham-se concepções de memória e inventam-se tradições para uma nação que reserve um passado comum aos seus integrantes. A noção de patrimônio histórico/cultural insere-se neste processo pelo qual o Estado se organiza mediante a criação de um patrimônio comum e uma identidade própria. A construção desse patrimônio pressupõe valores, norteadores de políticas públicas, a partir dos quais são atribuídos qualificativos a determinados registros documentais. Tais valores, conforme Menezes (1992, p.189), são historicamente “produzidos, postos em circulação, consumidos, reciclados e descartados”, referidos a dimensões cognitivas, formais, afetivas e pragmáticas. Como tal, o patrimônio “é político por natureza” (ibid. p. 191).
Segundo Arantes( 1989, p.25 ), no caso brasileiro os aspectos técnicos têm predominado nas discussões sobre o patrimônio em detrimento do seu sentido político mais amplo. Como resultado, a maior parte dos bens preservados expressariam o nicho luso-brasileiro, agrário e escravista da nossa cultura, pouco acessível a uma população que tenderia à indiferença a este patrimônio “de um país distante e alheio”. Neste sentido, Santos (1988, p.250) questiona as concepções de patrimônio cultural dominantes no Brasil e suas vinculações ao elogio de poder em diversos níveis, levando à “permanente valorização de um padrão de cultura que, orientado pelo iluminismo, mantém-nos distantes de uma apreensão plural e democrática da realidade social que nos envolve”.
Operar com a noção de patrimônio histórico/cultural sugere, portanto, cuidados. Conforme alerta Gonçalves (1988, p. 273), enquanto expressões da nação, os patrimônios culturais
“podem ser pensados como construções ficcionais sem nenhum fundamento necessário na história, na natureza, na sociedade ou em qualquer outra realidade com que confortavelmente justifiquemos nossas crenças nacionalistas. A nação, assim, pode ser discutida menos como uma questão de fato do que uma questão ficcional... podemos evitar a armadilha de trazermos para nosso discurso de cientistas sociais categorias próprias às ideologias nacionais”.
Jeudy(1990) observa o esvaziamento conceitual de termos como “patrimônio”, “memória coletiva” ou
“ identidade cultural “, paralelamente à mobilização social e as práticas e políticas de conservação que ocasionam, ao menos no caso francês. Adverte, porém, que “a equivalência metafórica entre ‘patrimônio’ e ‘memória coletiva’ permanece como algo a ser conquistado. O patrimônio não é o depósito da memória. Se se reduzisse a tal coisa, acabaria sendo um dos obstáculos ao movimento da memória”(ibid., p. 13).
Estas considerações remetem-nos à singularidade da informação arquivística e aos termos em que esta é avaliada e selecionada sob a lógica do seu gerenciamento. À medida que a informação arquivística torna-se menos utilizada ao longo do processo decisório, tende-se a eliminá-la ou a conservá-la temporariamente (arquivos intermediários administrados pela própria agência produtora ou pelas instituições arquivísticas). Para tal, consideram-se as possibilidades de uso eventual da informação pelo organismo produtor, ou a sua condição de documento de valor permanente. A esta configuração chegariam, segundo a Unesco, 10% dos documentos produzidos (arquivos permanentes), após submetidos a um processo de avaliação e seleção que se inicia na fase corrente ou seja, ainda nos órgãos da administração pública, embora sob normas estabelecidas pelos arquivos públicos. Constituindo os arquivos permanentes, estes documentos têm sua guarda pelas instituições arquivísticas públicas justificada em dois aspectos. De um lado, em função do uso desses documentos para a pesquisa científica e, de outro, como fator de testemunho das ações do Estado e garantia de direitos dos cidadãos. Com freqüência, estas práticas buscam legitimar-se no discurso da preservação do patrimônio histórico e democratização da memória nacional*.

* Ver a Resolução n.4 de 26 de março de 1996, do Conselho Nacional de Arquivos que aprova prazos de guarda e destinação de documentos arquivísticos relativos às atividades-meio da Administração Pública. D. O. da União de 29 de março de 1996.

ARQUIVOS E MEMÓRIA

A associação entre arquivos e memória é recorrente no pensamento e nas práticas arquivísticas. Lodolini (1990, p. 157) explicita esta relação:

“desde a mais alta Antigüidade, o homem demonstrou a necessidade de conservar sua própria ‘memória’ inicialmente sob a forma oral, depois sob a forma de graffiti e desenhos e, enfim, graças a um sistema codificado ... . A memória assim registrada e conservada constituiu e constitui ainda a base de toda atividade humana: a existência de um grupo social seria impossível sem o registro da memória, ou seja, sem os arquivos. A vida mesma não existiria - ao menos sob a forma que nós conhecemos - sem o ADN, ou seja, a memória genética registrada em todos os primeiros ‘arquivos’.

Não é incomum este discurso “naturalizante” sobre os arquivos envolvendo, inclusive, a noção de memória como dado arqueologizável, privilegiada na arquivologia.

“Mas não é apenas nas células do ADN que existem arquivos. Também o sistema nervoso do homem é um arquivo. A pitoresca locução ‘fulano é um arquivo’ tem, pois, sua contrapartida em nosso organismo. A memória humana está organizada em fichas e pastas que são os neurônios, onde se grava tudo o que acontece na vida, o despertar da consciência. ... Dizem os dicionários que ‘memória’ é a faculdade de reter (conservar e readquirir idéias, impressões, imagens e conhecimentos obtidos anteriormente). Exatamente como no arquivo. Em alguns indivíduos, a recuperação se faz facilmente (são as chamadas memórias de elefante ou de anjo), em outros a recuperação se faz lenta ou imperfeitamente (sãos as memórias de galo). Mas sempre haverá o arquivo completo de toda a vida, utilizável ou não segundo a qualidade da memória.”(Miranda Netto, 1982, p. 378).

O corpo como metáfora da memória mostra-se ainda ilustrativo daquilo que alguns reconhecem como uma “memória nacional” no âmbito da qual os arquivos estariam localizados.

“É preciso refletir um pouco sobre o conceito de memória nacional, que para mim está aí, guardada nos grandes depósitos de saber que são o Museu Nacional, a Biblioteca Nacional, o Arquivo Público, os órgãos regionais. A memória nacional está nos livros, no trabalho do Instituto do Patrimônio Histórico, enfim, em todas as entidades que, ao longo do tempo, se ocupam do problema da trajetória histórica da nação. A memória nacional, portanto, não precisa ser procurada. O que precisa ser feita é a dinamização da memória nacional ... E aí faço, de novo, o uso de uma imagem comparativa com o organismo humano. Quando se fala em memória, num sentido figurado, quando se empresta a idéia de memória a um fato qualquer, em geral há uma tendência a se tomar isso como ‘juntar’ ou ‘guardar’ alguma coisa, ‘reter’. E isso me parece insatisfatório, eu prefiro o conceito biológico de memória: guardar, reter, para em seguida mobilizar e devolver”. (Magalhães, 1985, p.67).


Para Robert (1990, p.137) “os arquivos constituem a memória de uma organização qualquer que seja a sociedade, uma coletividade, uma empresa ou uma instituição, com vistas a harmonizar seu funcionamento e gerar seu futuro. Eles existem porque há necessidade de um memória registrada”. Como tal, os arquivistas devem contar com o apoio de historiadores “para trabalharem a definição mesma de arquivos como lugar de elaboração e de conservação da memória coletiva (grifo nosso)”.
Couture (1994, p.37) não é menos contundente : “o arquivista tem o mandato de definir o que constituirá a memória de uma instituição ou de uma organização” .
O discurso de Favier na abertura do XII Congresso Internacional de Arquivos (Montreal, 1992) é enfático a este respeito.

“Somos arquivistas, não somos homens do passado. Nós temos a responsabilidade da memória comum dos homens e uma responsabilidade na construção do futuro. Estamos a serviço da vida, somos responsáveis por uma memória ativa que é, antes de tudo, um instrumento de trabalho para as sociedades humanas. A memória é o fundamento dos direitos dos cidadãos”. (Favier, 1994, p.81, tradução nossa)

Ao abordar a situação arquivística em Portugal, Lima (1992, p.26) expressa-se em termos não mesmos freqüentes na área: “Um país sem arquivistas é um país sem arquivos, e um país sem arquivos é um país sem memória, sem cultura, sem direitos”.

Eventualmente, reconhece-se que esta memória “resgatável” pelo fazer arquivístico é uma memória registrada:

“ ... a memória registrada não é um resultado estático. É um processo que serve às exigências das organizações. Ela procura um sentido nos conhecimentos aos quais se refere uma organização e a partir dos quais ela se constitui. A memória registrada mediatiza a reflexão derivada do pensamento organizacional para analisar uma situação, ela assegura decisões que sustentam a ação e orienta o desenvolvimento das operações” (Mathieu e Cardin,1990, p.110).

A noção de arquivo permanente traz em seu bojo a perspectiva de que expressa um tipo de memória materializada. Como tal, esta memória confunde-se com o próprio arquivo a ser preservado. O arquivo permanente tende a ser definido na literatura da área como “os conjuntos de documentos de valor histórico, probatório e informativo que devem ser definitivamente preservados” (Lei 8159, art. 8o., parag. 3o., grifo nosso).
Anteriormente à emergência da Teoria das Três Idades, o gerenciamento dos arquivos encontrava-se, desde meados do século XIX, sob a dicotomia valor histórico/administrativo dos documentos. No Brasil, uma das primeiras tentativas de aproximação das noções de valor histórico e permanente encontram-se no anteprojeto de sistema nacional de arquivos, elaborado na gestão de José Honório Rodrigues como diretor-geral do Arquivo Nacional (l958 - 1963 ).

" consideram-se documentos históricos e de valor permanente, todos os livros, papéis, mapas, fotografias, ou qualquer espécie de elemento informativo, independentemente de sua forma ou características físicas, produzidos, elaborados ou recebidos por instituições públicas ou privadas, em conformidade com suas atribuições legais ou em virtude de suas transações e conservados, ou adequados a tal fim, por essas instituições ou seus legítimos sucessores, seja como prova de suas funções, diretrizes, normas, realizações ou atividades, sejam em atenção ao valor informativo dos dados que nos mesmos se contenham".(Anteprojeto de criação do Sistema Nacional de Arquivos, art. 1o, parágrafo único).

Do interior destas reflexões, emerge uma dicotomia entre memória e informação.

“As dicotomias presença/ausência e conhecimento/informação como elementos indispensáveis ao bom funcionamento de uma sociedade, um grupo, uma coletividade revelam as especificidades dos arquivos; eles são memória, antes de ser informação. A informação tem qualquer coisa de neutra, de anônima.

Os arquivos são práticas de identidade, memória viva, processo cultural indispensável ao funcionamento no presente e no futuro.” ( Mathieu e Cardin, 1990, , p.114. grifo nosso).

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