Subject: Augusto Santos Silva ao DN |
Author:
Piteira Santos
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Date Posted: 23:29:07 09/02/02 Mon
Esquerda: moderna e aberta ao centro
AUGUSTO SANTOS SILVA
A dicotomia entre esquerda e direita é indispensável para distinguir os princípios e as orientações políticas fundamentais. Designadamente para quem se situa na perspectiva da esquerda. A direita que se vê a si própria como gestora de interesses e representante "natural" da Ordem sugere regularmente que não vale a pena discutir ideologias; mas aqueles que procuram combater por causas, e contra o que sentem como injustiças ou incompletudes, preferem separar as águas. Por isso, mesmo antes de cuidar de definir com pormenor as vinculações de cada um face à pluralidade de referências ideológicas elaboradas à esquerda, costumamos identificar-nos por essa metáfora espacial. Faz sentido distinguir entre esquerda e direita; e nessa distinção estamos à esquerda.
Mas não podemos ficar por aqui.
Desde logo, porque há uma outra oposição fundamental, que atravessa a primeira, entre forças democráticas e não democráticas. Há direita democrática e direita não democrática, há esquerda democrática e esquerda não democrática. Do ponto de vista da esquerda democrática, a esquerda não democrática é um adversário que é preciso combater politicamente e cuja influência social é preciso disputar. Faz sentido referir-me à esquerda se acrescentar essa precisão imediata: esquerda democrática, isto é, a que não encara a democracia como um empecilho formal ou um instrumento dispensável, mas a entende como fim em si mesmo. Por isso, não é possível pertencer à esquerda democrática sem se ser radicalmente democrata.
Em segundo lugar, a contraposição entre pathos revolucionário e prática reformista obriga também a especificações. Para a esquerda democrática, a revolução é um caminho legítimo para derrubar regimes ditatoriais, mas é um meio ilegítimo de confrontação política em democracia. E, aqui, o impulso reformista para a transformação dinâmica de sistemas sociais, induzida e acompanhada a partir da acção sobre pontos críticos, é preferível à deliberação "revolucionária" de se colocar de fora de qualquer quadro institucional ou exigir a mudança imediata e global. Ora, esta diferença conduz necessariamente quem nela se reconhece e nela prefere o reformismo à valorização do centro. As grandes transformações económicas, sociais e culturais das democracias modernas têm sido induzidas, comandadas ou acompanhadas, conforme os casos, por intervenções de tipo reformista: por isso é que é, em larga medida, justificável dizer-se que a atitude radical (de quem não transige com ambiguidades e de quem procura agir sobre o coração das coisas) e o alcance revolucionário efectivo (quanto à dimensão e ao alcance das mudanças provocadas) residem mais ao centro do que nos extremos convencionais do espectro político.
Entendamo-nos, porém, sobre o significado do centro, na diferenciação ideológica. O centro, como tal, não existe: não é uma posição autónoma no leque de posições possíveis. A distinção fundadora das ideologias políticas modernas não é tricotómica (direita, centro, esquerda), mas sim dicotómica (direita, esquerda). O que a aproximação ao centro faz é qualificar os pólos que se opõem na dicotomia: direita e centro-direita versus esquerda e centro-esquerda. Essa qualificação é, a meu ver, muito importante, porque nos ajuda a exprimir melhor uma dupla preferência: por uma lógica de governação, de quem quer exercer o poder para agir, e não quedar-se apenas pela reivindicação ou pela contestação; e por um impulso reformista, de quem percebe e louva os limites da intervenção sobre sistemas sociais a partir do Estado, compreende a complexidade e o dinamismo de tais sistemas e trabalha para gerar efeitos positivos e progressivos a partir de intervenções localizadas em aspectos decisivos. Defendo, em consequência, que a esquerda democrática tem indiscutível vantagem em definir-se como um arco de centro-esquerda e esquerda. Não somente ou sobretudo por cálculo eleitoral, mas sim por identificação doutrinária e política.
Em terceiro lugar, a tensão entre modernidade e conservadorismo impregna também o debate ideológico. Uso os termos em acepção muito lata, para caracterizar atitudes. O respeito pela tradição, por ser uma autoridade herdada, o apego quase instintivo pela ordem, o receio pelo "descontrolo" da mudança e a defesa mais ou menos explícita da reprodução das situações herdadas delimitam um quadro conservador de pensamento e emoção. Em contraponto, a valorização do espírito e da prática crítica, da problematização e da reflexividade, da adaptação aos novos tempos e da busca de novos horizontes caracteriza o que, à falta de melhor expressão, podemos chamar modernidade. Nestes termos, não basta dizer que a esquerda se inclina mais do que a direita para o lado da modernidade, e vice-versa. É parcialmente verdade, mas só parcialmente. Em várias conjunturas históricas, o centro-direita revelou-se mais ágil na interpretação da contemporaneidade; e há uma esquerda profundamente conservadora, a roçar em certos casos o arcaísmo, que se recusa a ver o mundo com outros olhos que não os das classes e das revoluções dos tempos da Revolução Francesa à Revolução Chinesa (variante comunista), ou os do Estado-Providência dos anos 50, 60 e 70 do século XX (variante social-democrata). É imperioso, portanto, que à identificação de tipo espacial (esquerda/direita) se cruze uma identificação por relação com o tempo (conservadores/modernos). Em consequência do que já atrás ficou escrito, parece-me que o campo da esquerda democrática só beneficia em destacar a sua vinculação a uma atitude de modernidade.
Finalmente, o bom uso das dicotomias requer o pleno reconhecimento das suas limitações. Todas as classificações têm, ao mesmo tempo, virtudes (tipificam, clarificam, separam) e defeitos (esquematizam, polarizam, colocam na sombra cambiantes, ambivalências e interpenetrações). Por outro lado, quando, como é o caso, as classificações misturam fortemente juízos de facto e considerações de valor, quando são ao mesmo tempo diferenciação de atributos e comparações de valor, é muito importante que saibamos perceber a sua relatividade, para não as transformarmos em rótulos ou armas de arremesso, substituindo a livre e necessária argumentação pela luta de nomes e as estigmatizações recíprocas. Ora, a dialéctica entre direita e esquerda tem uma história, e uma funcionalidade política que foi máxima quando se conjugaram lutas políticas intensas, balizas ideológicas marcadas e bases sociais de apoio frontalmente opostas. Quando quem era socialista não era liberal e vice-versa, quando os operários industriais "pertenciam" à esquerda e o pequeno campesinato à direita e quando os sistemas partidários repercutiam directamente as divisões e lutas sociais, a dicotomia iluminava suficientemente bem o espaço político. Mas em tempos de maior complexidade e menor rigidez, de filiações mais precárias e trajectos muito mais oscilantes, a capacidade interpretativa e identificadora da dicotomia ressente-se. Tudo isto desafia o enunciado clássico da oposição e dos seus pólos. Novos desafios, novos problemas e novas causas têm-nos interpelado sucessivamente. Para perceber o que digo, basta pensar em três questões - a emergência da consciência ecológica e da causa verde, na Europa desenvolvida dos anos 70 em diante; as identidades e os comportamentos sexuais e a constituição e interacção de quase-culturas neles fundadas; a interrogação ética sobre a ciência e a tecnologia e a sua reformulação dos direitos e deveres da humanidade. Nenhuma destas questões se formou e elaborou no interior da dicotomia entre direita e esquerda. Em largos aspectos, colocam-na em crise, noutros enriquecem-na. Como a evolução da relação entre os partidos socialistas e sociais-democratas e os movimentos e partidos ecologistas mostrou, na Escandinávia, na Alemanha e na França, a esquerda democrática revelou-se como o campo mais preparado para dialogar e colaborar com os protagonistas destas e de outras novas causas (em resultado, precisamente, do tipo de valores a que se vincula). Ficarmo-nos pelo entendimento clássico dos termos da dicotomia é que seguramente não ajuda. Portanto: aqueles, e são muitos, que diagnosticam o esgotamento da oposição entre esquerda e direita não podem ser sumariamente desqualificados como "direitistas". Têm de ser escutados, com seriedade e abertura de espírito. As preocupações que muitos trazem - nas formas de vida quotidiana, na cultura e na ciência, na comunicação e na relação interpessoal, no modo de lidar com a incerteza e o risco, na relação com a natureza, etc. - são muito importantes. É preciso que a esquerda seja menos clássica (e mais cosmopolita ou desenvolta) para percebê-lo.
Em resumo: creio que a melhor maneira de me identificar ideológica e politicamente é dizer que sou de esquerda. Mas acrescento: o campo em que me revejo é a esquerda democrática e moderna, uma esquerda que abarca o grande arco do centro-esquerda e da esquerda, e que tem uma relação não dogmática, mas desenvolta, com o mundo e a sua novidade.
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