Author:
Luís Cabral de Moncada
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Date Posted: 13/09/05 17:45:39
No nosso país ninguém parece compreender o liberalismo. Porque não conhece, maltrata. A esquerda julga erradamente que o liberalismo é apenas económico ou seja, que se reduz ao funcionamento do mercado livre, erro que já estava em Marx e a partir daí enfatiza os seus aspectos menos simpáticos, a exploração, a exclusão social, a «globalização», epíteto actual do capitalismo internacional, etc... A direita tradicional por seu lado é mais sensível à incapacidade do liberalismo de fornecer um quadro de valores culturais à escala individual e nacional, tudo dissolvendo num caldo de egoísmos, incapaz de unificar a família e a colectividade em torno de valores, tudo transformado em mercadoria, desde o património cultural ao ambiente e com reflexos até nas relações pessoais. Em suma, multiplicam-se as vozes denunciando, consoante a óptica particular de cada uma, a ausência de valores, a substituição da moral tradicional pelo utilitarismo, a dissolução dos costumes ou todos os males do capitalismo «selvagem». O inimigo comum é o liberalismo.
Ora a atribuição de todos estes males ao liberalismo releva de uma incompreensão total do que ele seja. À esquerda porque, como se disse, se julga que o liberalismo é apenas economia e à direita pelas razões referidas. Esquece-se que o liberalismo é também político e ético. Isto quer dizer que há uma moral liberal que se não confunde com o conservadorismo nem com a seca amoralidade do mercado, coisa que no nosso país poucos percebem. É por isso que quem cá se julga liberal não o é ou só o é de modo parcial pois que fora do âmbito económico é conservador ou mesmo pura e simplesmente amoral.
Ora o liberalismo não é a ausência de valores, tudo reduzido à utilidade nem é o reino exclusivo do mercado. O liberalismo é também político e moral, como se dizia, e isso significa a abertura à contribuição diferenciada de cada um dentro de uma perspectiva de respeito pelo próximo ou seja, de tolerância, como diziam os clássicos, de Locke a Voltaire e a Tocqueville. E a tolerância é, claro está, um valor moral porque pressupõe que se encare o próximo como pessoa, capaz de um contributo diferente do nosso para o património comum mas nem por isso menos válido, à medida do desenvolvimento da personalidade de cada um, ao menos tempo que pressupõe a aceitação dos resultados daquele contributo. Mas não se pense que as coisas ficam por aqui; o desenvolvimento livre e diferenciado de cada um requer a criação de condições mínimas para que tal desenvolvimento possa verificar-se. Logo por aqui se vê que no liberalismo político e moral há um lugar cativo para o Estado, mas isso teria de ficar para outro artigo. Seja como for, a atitude de tolerância é a chave do liberalismo político e moral, não a selecção dos mais "fortes".
O desenvolvimento económico, cultural e social trouxe como consequência imediata o pluralismo. Numa sociedade plural como a de hoje o pluralismo gerou a inevitável ruptura com a sociedade e a moral tradicionais baseadas na hierarquia e na unicidade dos valores. O direito público actual já percebeu isto há muito tempo. É por isso que a moral liberal adequada aos nossos dias não pode deixar de ser pós-tradicional, ao contrário do que sucedia anteriormente quando a conjuntura social era outra. Fazer perceber isto aos conservadores é impossível. Para o liberalismo os valores não preexistem ao ambiente social. Este é que os gera a partir de um mínimo de regras de conduta de aceitação geral.
O liberalismo não é, portanto, ausente no plano moral nem sequer agnóstico. Não impõe é um conjunto de valores hierarquizados ou seja, renuncia hoje a um modelo político e ético global para a sociedade. Compreende-a e aceita-a como ela é hoje ou seja, como um conjunto de estruturas relativamente independentes sem grande continuidade de sentido e sem denominadores comuns ideológicos ou morais, marcada por contradições e fracturas. A ética social e a vida política são assim fragmentárias e dispersas. A compreensão e aceitação desta realidade nada mais é do que o liberalismo político e moral de hoje.
Ora isto deixa muita gente insatisfeita. A esquerda e a direita nacionais preguiçosamente habituadas ao «pronto a pensar» e representadas por essa figura tão portuguesa que é o intelectual estúpido ficam embaraçadas com tanta complexidade. Que saudades têm das virtudes metafísicas da religião e da pátria ou então do «progresso», do proletariado ou da economia centralizada, consoante os gostos. Daí o confrangedor jogo de cabra-cega das correntes de opinião dominantes no nosso país com a realidade em que vivemos.
É por isso que o liberalismo político e moral é, mais do que qualquer outra, uma atitude racional na esteira do que de melhor nos legou a modernidade, dúvida metódica perante os lugares-comuns ideológicos, construção racional das coisas a partir de postulados críticos e evidentes, renúncia a totalitarismos explicativos e legitimatórios. É esforço demasiado a pedir aos intelectuais nacionais.
Professor de Direito
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