Subject: Da endogamia ao luto |
Author:
Ex-militante
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Date Posted: 17/09/05 16:22:29
In reply to:
JVA
's message, "Debate marxista no Porto" on 16/09/05 13:16:25
Para os que estão e estiveram fora da crença e do rito, ou lá estão ou estiveram numa pertença periférica, é intrigante o facto de alguns ex-comunistas demorarem a “despegar-se” da “coisa”. Dito de outra forma, já não lhe pertencendo, manterem o PCP, aparentando a persistência numa dialéctica amor-ódio, como referencial político marcante mesmo quando o consideram um projecto esgotado na sociedade portuguesa.
À luz dos critérios “normais” de simpatia ou mesmo militância partidária (por exemplo, vista à luz de outras opções), compreende-se que pareça tratar-se de lutos demasiado prolongados e de natureza obsessiva e fixista. Algo pois existe na “coisa” para que seja assim. Ou seja, decerto o casamento foi especial para que o divórcio seja (ou pareça) tão complexo, doloroso e ressentido.
A adesão à militância comunista representa um “segundo nascimento” – a partilha de uma missão com a classe redentora (o proletariado); a aquisição de uma visão do mundo em que, no meio de quaisquer escolhos, o futuro só pode ser “radioso” (uma sociedade sem classes); a aquisição de uma cultura marxista que tudo explica, tudo clarifica e em que tudo está previsto; confere uma sensação de libertação do “homem velho” (o individualista, o egoísta, o solitário, o prisioneiro dos bens e vantagens materiais) e que se vê, por opção transmutante, no limiar de ser, poder ser, querer ser, por revelação e eleição, um “homem novo”. Esta revitalização de renascimento confere uma energia própria e superadora, dispondo-o, ao serviço do colectivo, a mudar o regime, se necessário pelo sacrifício e pela violência, transpondo a sua mudança individual para o projecto de uma mudança social. E nisso, não se coíbe, nem se pode coibir, de mudar o seu estar e pensar sócio-cultural e os critérios de avaliação moral sobre procedimentos. Porque, portador de uma “superioridade moral” (a da condição comunista), o fim é a Revolução e o meio é o Partido. Fora dele, existem, maniqueisticamente, aliados (a ganhar, a recrutar) ou inimigos (a combater, a abater).
A vida de Partido implica a homogeneização (transferência do “eu” para o “nós”) e o cadinho dela é atribuída aos sacerdotes depurados no centralismo democrático (iconografados como “exemplos”) com capacidade, poder, prestígio, abnegação, desprendimento e ascendente para estarem num patamar iluminado onde se sabe mais e se decide melhor. No processo de homogeneização, o ser de cada militante, cada um com o seu percurso próprio de conversão, muda radicalmente em função de uma pertença a uma instituição “total”. O processo iniciático e de ascensão na osmose com o “nós” apresenta as suas etapas – sacralização do acto de adesão, orgulho da posse do cartão de membro, o acesso à fraternidade do partido (ser camarada, ter camaradas), iniciação na doutrina e na história do partido, mudanças de comportamento (para passar a ser um “verdadeiro comunista”) na vida social (no trabalho, na família, nos colectivos sociais, nos laços gregários), treino da vigilância perante os desvios e a presença do inimigo, aderir ao calendário festivo (congressos, comícios, festas do “Avante”), assimilar e propagar a lenda partidária, progredir na responsabilidade partidária, lendo o “que interessa”, vendo o “que interessa”, sabendo “o que interessa” e fazendo o “que interessa”. O conjunto dos reflexos gerados nesta osmose com as regras provoca, sobretudo, a construção de uma barreira simbólica entre o “interior” (os camaradas, o Partido) e o "exterior" (visto sob a óptica do Partido). Quando o consegue, o militante está imune perante o inimigo, é pertença do Partido. Ou seja, fica prisioneiro voluntário da endogamia partidária.
A ruptura processada pelo militante entre passado e futuro (o presente são as tarefas), submete a personalidade do indivíduo à organização e remodela a sua identidade pessoal e social. Por outro lado, há uma reformulação de atitudes, nomeadamente quanto ao direccionamento focalizado do espírito crítico, o qual é virado exclusivamente para o mundo exterior (onde estão: os males, as imperfeições e as contradições; os monopólios, o capitalismo e o imperialismo; a democracia burguesa; os Estados Unidos; a direita, o centro e a falsa esquerda; ou seja, os objectos a modificar ou a combater) o que tem como consequência principal a imunização do Partido que assim perde qualquer importância de avaliação nas suas imperfeições e perversões. A relação com o Partido transforma-se num pólo de pulsão libidinosa, em que, de dentro para dentro, tudo se justifica e sem que se necessite discutir (“não discutir o Partido” equivale, em prevenção à heresia, ao postulado salazarista de “a Pátria não se discute, defende-se”).
No processo de militância, tende-se a concentrar dentro do Partido o essencial da vida intelectual e social, dos afectos e das ligações (o melhor dos estranhos é visto como pior que o pior dos camaradas). Então, e nos casos de sucesso, a vida, toda a vida, confunde-se com o Partido (é quando o militante está maduro para passar a “funcionário”, isto é, “revolucionário profissional”). E os laços com o exterior tendem a reduzir-se a funções de influência e não de pertença. O “muro” existe.
Nos casos em que há perda ou ruptura com a fé (e várias podem ser as situações que as podem provocar), o edifício conceptual implode e o “antigo militante” vê-se perante os ónus de se reconstruir afectiva, politica e intelectualmente (muitas vezes, também profissionalmente), recompor a personalidade, adaptar-se a um mundo exterior que antes olhava de dentro de muralhas, solitário obrigado a re-situar-se socialmente, órfão carente de camaradas e de amigos, ter de reiniciar laços gregários e de solidariedade. Ou seja, proceder a um “terceiro nascimento”. Agora, o Partido passa a ser visto de fora para dentro, as perversões avultam e agigantam-se, os actos manipulatórios parecem grosseiros e odiosos, o projecto reduz-se ao iníquo. Lógico é que muitos militantes, quando os defeitos da “coisa” entram olhos dentro, queiram evitar o terramoto (pessoal, social e político) da ruptura e, por outro lado, que aqueles que o enfrentam procurem concentrar-se no combate às causas dos anos de engano e de demissão do “eu”. Mais que natural, pois, que, em grande número de casos, o luto seja, então, não só doloroso como prolongado.
Publicado por joao.tunes em http://agualisa3.blogs.sapo.pt/
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