Subject: O óbvio que ninguém quer ver |
Author:
Luciano Amaral
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Date Posted: 28/07/05 19:12:06
Não surpreendem as grandes expectativas que o geral da população e da opinião vão depositando em sucessivas soluções aparentes para o problema político-económico português. Custa a toda a gente admitir que um determinado sistema, que apesar de tudo demonstrou uma certa funcionalidade até certa altura, seja incapaz de regeneração. Logo, vai-se tentando tudo antes de chegar à conclusão a que toda a gente tem medo de chegar, ao óbvio que já toda a gente viu e ninguém quer ver que a nossa democracia, se quer sobreviver de boa saúde, tem de alterar de modo profundo o seu código de funcionamento.
Daqui os entusiasmos em cadeia com os já múltiplos, e contraditórios, avatares que o Governo Sócrates foi assumindo. Em campanha, Sócrates explicou que o problema nacional era a falta de confiança em nós mesmos. Meio mundo exultou com esta visão política ao estilo de Lobsang Rampa ou Shirley MacLaine, na sua obra Não Caia da Montanha. O resultado foi uma maioria absoluta. Em seguida, deu-se uma mutação em sentido esfíngico. Outro meio mundo (ou o mesmo) rendeu-se embevecido ao silêncio de Sócrates. Parecia então que bastava não mencionar os problemas para eles, como que por prestidigitação, desaparecerem. Depois, começaram a pingar as más notícias, embora se continuasse a asseverar que o "discurso da tanga" não regressaria o défice não era problema, problema era o crescimento económico. Finalmente, houve a queda na realidade. Afinal, o défice era mesmo enorme e era mesmo preciso subir impostos e cortar despesas. O tal meio mundo (mesmo se contradizendo a sua atitude anterior) entrou em grande grita entusiasmada com a "coragem" de um Governo que finalmente tomava as "medidas estruturais" necessárias. Até que, no outro dia, se demitiu o ministro das Finanças, aparentemente porque a tal "coragem" talvez não fosse assim tanta: a maior parte do Governo, na realidade, não tinha desistido de abrir os cordões à bolsa (actividade que alguns preferem denominar tecnicamente por keynesianismo).
Toda a gente quis acreditar na tese da "coragem". Mais que todos, a oposição respeitável de direita. Quem, se não o PSD e o CDS, beneficiaria com um período de purga orçamental? Uma purga que libertasse o caminho para futuras legislaturas onde, de novo com folga, fosse possível voltar a dispensar benefícios, a única prática que a nossa classe política percebe? Como é evidente, a fase da coragem acabou, com ela acabando também as veleidades de "consolidação orçamental" - não custa muito imaginar o que será o Orçamento para 2006. A verdade é que ninguém dá mais um avo de credibilidade a este Governo. Não faz mal. Perfilam-se já no horizonte as próximas ilusões. Neste momento, a preferida parece ser a chamada "presidencialização do regime". Quadro em que Cavaco surge como homem providencial. Convém percebermos a irrelevância tanto do método como da pessoa para resolverem os nossos problemas. Quanto ao método, a questão não está na falta de legitimidade política do Governo. Este Governo tem à sua disposição um mandato claríssimo para adoptar políticas decididas, mesmo impopulares; o Presidente não teria maior. E também não está no homem. Porque o homem não imagina nada de diferente daquilo que os últimos governos alguma vez imaginaram, e que é cortar despesas a eito, para criar um pouco de respiração até ao mirífico regresso do "crescimento económico".
Vai sendo tempo mais do que suficiente (mas pelos vistos não é) para se perceber que o problema do nosso sistema político e da nossa economia não se resolve apenas cortando despesas, com custos extremamente gravosos para toda a gente. A solução não passa por cortar no rendimento e na prestação de serviços de metade da população, mas por encontrar outra maneira de providenciar esse rendimento e esses serviços. Quem quiser regenerar o nosso sistema político-económico não se pode limitar a afirmar a necessidade de "sacrifícios", cortando a torto e a direito. Quem o quiser fazer tem de conceber outra forma de relacionamento entre governantes e governados, o que passa pelos tais cortes, mas deve ser complementado por um enquadramento institucional alternativo. O primeiro passo para isso é compreender que, precisamente, o Estado não deve ser um providenciador de rendimento e um prestador de serviços (que são efectivamente essenciais à vida de toda a gente), mas sim uma instância que enquadre de forma estável os esforços dos indivíduos, os quais poderão então encontrar as suas soluções para obterem aquele rendimento e aquela prestação de serviços.
Pouca gente quer ver isto. Altura em que chegamos ao mais recente episódio desta nossa bela farsa a ameaça de candidatura à Presidência do dr. Soares. O dr. Soares é o representante supremo deste estado de coisas. Ele é o fundador da nossa democracia, um dos seus melhores praticantes e, autenticamente, o seu emblema. Se concorrer e se for eleito, talvez seja a melhor maneira de rematar toda a história: o homem que presidiu ao nascimento do regime estaria perfeito para presidir também ao seu funeral.
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