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Subject: Bukharine e os limites do Bolchevismo


Author:
www.comunistas.info
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Date Posted: 19/08/07 10:39:41

Bukharine e os limites do Bolchevismo
O que fica depois da leitura de “O Socialismo e a sua Cultura”?
por Paulo Fidalgo
A publicação nos EUA da obra "O Socialismo e a sua Cultura" de N. Bukharine, escrita nas adversas condições da sua prisão em Março de 1937 onde viria a ser executado um ano depois, é um grande acontecimento para o movimento comunista. O livro foi agora descoberto nos cofres bem fechados do arquivo de Estaline, de onde de resto têm surgido tesouros marxistas surpreendentes, e é publicado com a colaboração de Stephen Cohen o biógrafo de sempre de Bukharine. Analisa-se aqui de um ponto de vista pessoal o significado que pode ter hoje o texto até agora inédito de Bukharine para a renovação comunista. E dá-se conta das condições de luta e prospecção teórica muito difíceis em que Bukharine foi forçado a trabalhar, em Lubianka, a fábrica de horrores do estalinismo em Moscovo.
“Não deixes que este trabalho pereça. Repito e sublinho: (isto nada tem que ver com o meu destino pessoal). Não deixes que ele seja perdido!... tem piedade! Não de mim mas deste trabalho!”
Bukharine, carta da prisão a Estaline, 1937


Evocar os processos de Moscovo. São surpreendentes os tesouros marxistas que continuam a sair dos cofres bem fechados do estalinismo. Daquilo que foi uma fábrica de horrores contra os obreiros do Grande Outubro, na prisão de Lubianka em Moscovo. Daí conseguiram alguns dos documentos principais escapar à fúria incineradora que todos os dias alimentavam o fumo da sua chaminé com milhões de documentos, poemas e novelas dos bolcheviques encarcerados nas purgas dos anos 30. É desse arbrítrio de Estaline quanto ao que incinerar ou arquivar, que ainda assim podemos aceder hoje a novas revelações.

Como reagiram os comunistas ao que se estava a passar, como trabalhava a máquina opressora da camarilha instalada no Kremlin? Que questões pode essa história explicitar para que os comunistas consigam retomar hoje, em novas condições, o projecto que tanto os iludiu depois do 7 de Novembro de 1917?

É seguramente este o caso de “O Socialismo e a sua Cultura”, obra testamentária de um dos pais-fundadores do bolchevismo, Nikolai Bukharine, escrita em Março e Abril de 1937, os dois primeiros meses da sua prisão em Lubianka, onde iria estar um ano até à sua execução em Março de 1938. O processo de Bukharine foi o acto final da farsa policial e judicial encenada por Estaline nas célebres purgas de Moscovo. Bukharine foi o último destacado bolchevique executado sob a inacreditável e rídicula acusação de contra-revolucionário, suposto agente da Alemanha e do Japão para “desmembrar a URSS”. Em 1942, logo a seguir, com o assassinato de Trotsky por um agente de Estaline, na Cidade do México, fechou-se o círculo histórico em torno do bolchevismo.

Preso em plena sessão plenária do Comité Central do Partido Comunista, em Março de 1937, ao que parece, com entrada da polícia em plena reunião. Bukharine é levado para Lubianka, ao mesmo tempo que todo o espólio situado no seu apartamento do Kremlin era confiscado pelo NKVD. Este período revelou-se febrilmente fecundo com a passagem a escrito de 4 obras, agora descobertas e trazidas a público: a IIª parte – a Iª está perdida e possívelmente incinerada à ordem de Estaline - de “Socialismo e a sua Cultura”, publicada agora nos EUA sob a mão dos herdeiros e do seu biógrafo americano Stephan Cohen; a obra “Arabescos Filosóficos” publicada recentemente nos EUA, um livro de poemas, e a novela autobiográfica “Como tudo começou (How it all began)” também já editada. No seu encarceramento em Lubianka, recebeu Bukharine permissão para ler e escrever no intervalo dos interrogatórios, no que foi um certo favor para o antigo “filho querido do partido” e “principal teórico do bolchevismo” nas palavras testamentárias de Lenine. Favor que contrasta, seguramente, com a violência física que se abateu sobre os altos comandos do exército e da administração para forjarem depoimentos contra Bukharine. Particularmente chocante foi o jogo de chantagem e morte exercido para com a grande plêiade de colaboradores, geralmente jovens quadros, que acompanhavam com entusiasmo a acção de N Bukharine. Sobre eles, a pressão da tortura e do tiro na nuca arrancaram confissões forjadas que ajudaram na incriminação do último bolchevique - para além de Trosky.

A edição dos escritos da prisão de Bukharine, fazendo parábola com os escritos do cárcere de António Gramsci, outra grande figura do comunismo mundial barbaramente tratada pelos esbirros de Mussolini é, sem dúvida, um acontecimento para a história do movimento comunista. Constituem instrumentos de análise e interrogação para que as gerações que hoje transportam a bandeira vermelha possam compreender que, nela, “vão também gotas do sangue” de Bukharine e de toda a geraçõe de ouro do bolchevismo. Sangue vertido pela violência do estalinismo e não pela usual violência dos “inimigos de classe”. Sem conhecer os acontecimentos de Moscovo nos anos 30 de século XX, não será possível retomar a prospecção do futuro que vai colocar de novo a iniciativa histórica do lado dos trabalhadores.

O anti-fascismo de Bukharine e a questão do pacto Estaline-Hitler. Na leitura de “O Socialismo e a sua Cultura”, o que percute sobre o leitor é o apaixonado anti-fascismo de N. Bukharine. A posição expressa no meeting de Paris em 1936 organizada e acolhida por André Malraux, sem que estivesse especialmente combinada ao nível do Partido Soviético, mostra o elevadíssimo grau de elaboração crítica que Bukharine tinha construído em torno do que considerou justamente ser um enorme truque do capitalismo de alguns países europeus e o Japão para lidarem com a crise económica que sobre eles se abatia. Procuravam assim forjar uma nova realidade política, ideológica e de Estado, capaz de os fazer sobreviver. Nem que fosse à custa de demagogia, da guerra e de uma prometida supremacia assente no racismo. Supremacia afinal que seduziu milhões de trabalhadores fustigados pela crise e iludidos pela propaganda na funesta fantasia de obterem um melhor estatuto material. Nacionalismo, racismo e irracionalismo, expressos na fé de vitórias inescapáveis, evocando pretensos símbolos mitológicos ou ideias de destino inelutável tomaram perigosamente conta da mente de trabalhadores e da elite pensante da Alemanha. Já no rescaldo de uma visita à Alemanha, nos anos 20, Bukharine expressou alarme pela febre irracionalista em marcha. Só raras vezes alguém exprimiu com tanta lucidez o significado político, filosófico e ideológico do fascismo, como o fez Bukharine diante da plateia de intelectuais franceses em 1936. Não existe, sintomáticamente de resto, a versão russa do discurso, mas tão-só a versão francesa, agora publicada em anexo ao livro “O Socialismo e a sua Cultura”.

Neste discurso, Bukharine põe em evidência a oposição fascismo vs. Socialismo, como contrários operativos da situação histórica em evolução. Considera imperiosa a mobilização de todas as manifestações de democracia, vigentes à época, para uma inequívoca convergâencia com a URSS, de forma a barrar o caminho ao extremismo nazi.

Embora jogando com ideias simplificadas e prevalentes no movimento comunista - podemos afirmá-lo agora na nossa questionável sabedoria retrospectiva - de que pudesse o fascismo ser uma espécie de crise terminal do capitalismo ou de que as tais forças de democracia burguesa presentes na arena mundial tenderiam a ser secundarizadas no conflito histórico em marcha, Bukharine defende enfaticamente o princípio da mobilização mundial da cultura, do socialismo, da democracia e do liberalismo político para enfrentar a besta.

A posição de N. Bukharine convoca à análise das posições da Internacional Comunista nesta matéria, fortemente dominadas até ao seu VIIº Congresso de 1935 pela errada e sectaríssima consigna da “Classe contra Classe”. Segundo a qual, foi escavada uma vala intransponível de confrontação entre social-democratas e comunistas por todo o mundo. Confrontos que, como Thalman, o secretário-geral do DKP – Partido Comunista Alemão - já prisioneiro em Buchewald, reconheceu, terá ajudado, e de que maneira, à formação do 1º governo de Hitler, num Reichstag onde apenas dispunha de maioria relativa. Segundo Stephan Cohen, o biógrafo de Bukharine, resultaram estas posições das orientações tutelares de Estaline, apesar do relevo de Burkarine como presidente da IC durante alguns anos. Pelo contrário, a viragem para a política de unidade anti-fascista em 34/35 favoreceu os governos de coligação democrática em França e Espanha e contou certamente com influência intelectual e política do pensamento de Bukharine. Porventura, foi Bukharine transitoriamente mais escutado, de acordo com Cohen, pela mudança de posição do partido em Leninegrado empreendida pelo seu responsável Kirov, assassinado entretanto misteriosamente em Dezembro de 1934. Neste curto período, Estaline terá ficado com menos margem no bureau político do partido soviètico o que terá permitido maior auscultação dos argumentos bukharinistas na direcção do partido soviético, mesmo que dela já não fizesse parte.

O discurso de Paris, de 1936, profusamente glosado e desenvolvido em “O Socialismo e a sua Cultura” não é e não foi, visivelmente, a posição do governo da URSS e do partido Soviético, como seria aliás do conhecimento de Bukarine. Mesmo em Lubianka, Bukharine deveria estar informado dos movimentos diplomáticos de aproximação a Berlim.

É plenamente compatível a leitura de “O Socialismo e a sua Cultura” e do discurso premonitório de Paris, em 1936, como sendo expressão da tese do valor primordial do antifascismo, contra as equi-distâncias dos posicionamentos da diplomacia soviética nesse período. Lembremo-nos, da enorme paralisia do PCF, face ao início da guerra. Há que conhecer a este propósito, toda a controvérsia em torno de Maurice Thorez, dirigente do PCF, à época. Para os comunistas europeus, a guerra, e o desenrolar da sua luta heroica começaram visivelmente com atraso, porque a política de equidistância prevaleceu contra as posições dos anti-fascistas, como as de Bukarine.

A equidistância, ou o argumento de que a IIª guerra, no seu início, era apenas ou só, uma guerra inter-imperialista à semelhança da Iª, resultou do nacionalismo estreito de Estaline que resolveu sacrificar –uma vez mais, como tantas vezes na história - o valor da formação de uma frente ampla de luta pela liberdade, a troco de uma suposta necessidade de jogar em vantagens militares que de resto nunca se confirmaram. De facto, a invasão alemã da URSS foi marcada por negligentes e imperdoáveis erros da direcção soviética, como foi denunciado no relatório Kruchev ao XXº Congresso do PCUS em 1956, e nos depoimentos autorizados de miltiares soviéticos que se lhe seguiram. A URSS mostrou estar praticamente desarmada e fragilizada quando foi atacada pelas hordas fascistas. Estaline usou de suposta esperteza nacional para conquistar uma espécie de farsa de détente e prejudicou a formação atempada de uma frente anti-fascista, sem qualquer contra-partida perceptível. Em Portugal e no PCP, as notícias do pacto Estaline-Hitler geraram um choque profundo e registaram-se importantes dissidências (p. ex. Lyon de Castro), contra precisamente o espezinhamento do anti-fascismo aos pés de uma suposta realpolitik cínica e sem respeito por um programa político mobilizador. O esforço de Bukharine, no seu “O Socialismo e a sua Cultura”, parece portanto ter estado apontado à defesa de uma conduta alternativa, mais consentânea com a consciência universal do perigo fascista. Essa consciência resultava da percepção aguda – como exprimiu Bukharine em Paris - de que o fenómeno fascista representava um perigo especial, uma tendência destrutiva do capitalismo, extrema nas suas formas e propósitos, nos contornos da sua formação económica, que representava um evolucionismo especial e ameaçador do capitalismo, não só para a URSS, para a classe operária internacional, mas igualmente para sectores vastos da burguesia intermédia e mesmo no grande capital organizado segundo instituições de democracia burguesa. Estaline, na sua avaliação redutora, tudo colapsou, e adoptou automaticamente as análises que vigoraram na Iª guerra. Essa visão que desvaloriza as diferenças entre democracia, mesmo que burguesa, e ditadura terrorista, que desvaloriza por exemplo, hoje em dia, a diferença entre países da Europa ocidental organizados segundo uma herança social-democrata, e os EUA, onde predomina uma visão selvagem e liberal-extrema do capitalismo tem, naturalmente, um significado profundo na história do pensamento comunista. A equidistância revelada por Estaline, mostra adicionalmente como o problema da liberdade e da democracia era relativizado, para não dizer outra coisa, pelo governo soviético. Se a situação interna na URSS era de evolução ditatorial, natural seria que o problema da liberdade no mundo fosse secundarizado a favor de trocas de favores diplomáticos e territoriais.

Outros recuos tácticos se revelaram necessários na história, como foi por exemplo a questão da paz separada da URSS com a Alemanha, no tratado de Brest-Litovsk, em 1918. É certo que Bukharine – e Trotsky – tomaram partido na minoria do Comité Central em 1918 contra a táctica de Lenine de procurar a paz em condições de elevado sacrifício para a revolução na Europa e para a integridade territorial da URSS. Mas o debate profundo e vivo na direcção do partido bolchevique, assentou na ideia de que, sem uma pausa, estaria a Revolução de Outubro ameaçada e não seria possível manter a base social de apoio à revolução caso a promessa primeira da revolução, a promessa da paz, não fosse concretizada de imediato em 1918. As vantagens e desvantagens estiveram bem claras em cima da mesa nessa altura e a direcção soviética foi convincente na sua procura de espaço e respiração para uma reorganização militar e económica numa Rússia fustigada pelo desastre da 1ª guerra mundial. No caso de 1938, essas supostas vantagens e a preocupação com a obtenção de uma qualquer vantagem permanecem ainda hoje por elucidar. Mesmo com os golpes diplomáticos dos países burgueses de tentarem empurrar Hitler para uma expansão a leste, de iludirem qualquer esforço efectivamente procurado pela URSS de construir um quadro de segurança internacional que barrasse o caminho à agressão fascista, mesmo nessa atmosfera de enganos, o caminho nunca poderia ser o de desarmar a luta popular contra a agressão na Europa e no Mundo. Permitiu o recuo de 1918 seguramente à URSS sobreviver e constituir-se em pólo de irradiação da transformação social. O recuo de 1938, não evitou, nem por sombras, o ataque quase letal do fascismo às forças da democracia e da liberdade. Pode até afirmar-se que essa détente separada, ajudou a desarmar a resistência na Europa e a fragilizar a própria URSS, com o seu governo muito mais empenhado em depurações internas no partido, na sociedade e no Exército Vermelho, do que em preparar-se para o confronto. Há que lembrar que Bukharine é fuzilado em Março de 1938 no dia da entrada das tropas nazis na Áustria. E essa coincidência diz tudo acerca do que eram as inclinações de Estaline.

O recuo de 1918 respondeu a um necessidade premente é certo, mas sempre vinculada à construção da liberdade e da nova economia. Em 1938, a necessidade exprimiu-se como apego a uma dada realidade militar e nacional, mas onde o valor supremo da liberdade e do anti-fascismo ficaram claramente a perder. Felizmente que transitoriamente apenas. As diferenças entre 1918 e 1938 parecem hoje portanto óbvias. Como de resto pareceram a muitos comunistas à época. O livro de Bukharine, “O Socialismo e a sua Cultura” é portanto um momento onde esse episódio fulcral da história do comunismo pode e deve ser re-discutido.

Em que circunstâncias deve a necessidade sobrepor-se à liberdade – para citar uma interrogação de Hannah Arendt? Em que critério pode assentar uma guinada de recuo táctico sem que o processo histórico deslize irremediavelmente para um mero jogo de incontornável necessidade histórica, em detrimento da agenda fulcral da construção da liberdade e do socialismo. Há muito que a URSS tinha deslizado para o capitalismo de Estado – facto não aceite por Bukharine – e tinha desistido de construir um modo de produção avançado assente na organização cooperativa dos produtores livres, onde a liberdade, os seus órgãos e instituições, viessem a ocupar o fulcro da acção consciente. Se a necessidade irrevogável se tinha portanto tornado apenas em empreendimento estatal “modernizador”, é natural a opção de Estaline por um entendimento com Hitler, depois de terem caído muitas das bandeiras do bolchevismo.

O limite histórico do bolchevismo. Muito para além das peripécias históricas ou tácticas que o livro de Bukharine autoriza a discutir, o seu significado mais estrutural é o de procurar descortinar a motivação profunda do próprio empreendimento do autor. Segundo os editores, trata-se de um longo memorando com um destinatário: Estaline. É ou terá sido um esforço para assinalar a Estaline, ao partido e aos trabalhadores, o sentido grandioso do projecto bolchevique, dos objectivos que deveriam nortear a acção do presente.

Bukharine opta por explanar a sua visão do socialismo. Não do presente necessariamente sombrio em que ele próprio está preso e enfrenta a mais que provável morte, mas de uma utopia sobre a igualdade, o fim das nações, a construção da humanidade unida, o problema da liberdade, o papel do indivíduo e do colectivo, o papel do partido, da administração e da burocracia. Fá-lo em linguagem viva, em constante confronto contra os opositores internos e externos às opções da Revolução de Outubro, com eles polemiza intensamente, mais com o vigor das suas apostas do que verdadeiramente pela refutação lógica dos argumentos.

À acusação dos adversários do comunismo de que a URSS reforçou ou manteve no essencial uma orientação de base nacional, expressa por exemplo na manutenção das fronteiras internas à própria URSS, iludindo a orientação internacionalista de construir uma humanidade unificada, Bukharine responde que o objectivo internacional se mantém e começou a ser de facto edificado com a nova amizade entre os povos da URSS, a batalha pela igualização de oportunidades inter-nacionais e pela supressão das classes antagónicas, espécie de raiz da inimizade étnica e nacional precedentes. Bukharine admite que se mantiveram fronteiras no interior da URSS, mas que elas seriam apenas de ordem “administrativa”, sem o significado que têm na organização geopolítica e económica do mundo. Bukharine enfaticamente sublinha que as ditas fronteiras não impedem a construção de um plano integrado de desenvolvimento. Bukharine refuta os adversários com a defesa de uma suposta necessidade presente, transitória, de fronteiras, etapa num processo que irá tornar a URSS num motor da construção de uma nova humanidade. Bukharine contrapõe à evolução real, qualquer que seja a sua justificação, a visão da sua utopia (e da ideia geral dos comunistas). Não há qualquer esforço ou capacidade de interpretar a evolução real, independentemente das intenções dos pais-fundadores do bolchevismo. É como se o presente pudesse ser refutado pela apresentação feérica e onírica de um futuro cintilante.

A mesma matriz de argumentação é esplanada para os sucessivos problemas que aborda, rebatendo as necessidades actuais com o sonho dos revolucionários. Essa tendência de fugir ao presente e temperá-lo com uma visão idílica do futuro pode antes de tudo ser olhada como incapacidade de compreender o que se estava a passar. Pode ser lido como desesperada tentativa de defender o legado bolchevique reiterado no sonho, apesar do presente se ter submetido à suposta necessidade histórica. Incapacidade de teorizar o presente e admitir a força coerciva das circunstâncias que adiam o sonho ou questionam a sua sinceridade, resume-se a isto o fim do ciclo histórico do bolchevismo. Daquilo que foi a tentativa de edificar o socialismo num país de economia atrasada, com recurso a soluções profundamente estatizantes, num ambiente de miséria que pressiona muito mais a resposta a necessidades sociais do que ao paciente esforço de construção da liberdade e das suas instituições – segundo um argumento de Hannah Arendt – e onde o orgulho nacional se confunde e captura as ideias de modernização e industrialização a todo o custo, num empreendimento de cima para baixo, baseado numa suposta legitimidade da “vontade do povo”, em vez de resultar de uma negociação efectiva de interesses de um povo diverso do ponto de vista nacional e de classe.

Bukharine apresenta de resto uma visão datada da utopia, daquilo a que se pode chamar de ideal comunista. Essa conotação datada da visão – sabendo que a visão é indispensável à condução do presente – exprime-se numa humanidade tendente à uniformidade social e política, naquilo que podemos descrever como um figurino de classe operária baseada na grande indústria, um modelo que se tornou obsoleto. O mundo dos assalariados é hoje muito mais diverso do que era suposto ou imaginável a partir da realidade dos anos 30 do século XX, a sua posição no modo de produção, as próprias relações de produção expressas em diferentes modalidades contratuais intra-pessoais e inter-pessoais tornaram o mundo e a humanidade no oposto da visão comunista daqueles anos. Esse erro de foco não é necessariamente grave e não prejudica os esforços presentes da renovação do projecto comunista.

Já pelo contrário, pode ser grave a ideia de que o estatismo económico é socialismo, aspecto que Bukharine aceita e defende contra os argumentos tanto de adversários como de apoiantes do comunismo – como Trotsky. Bukharine recusa a ideia de que a formação de um corpo de administração se possa assemelhar a uma nova classe social. Defende que a condução “consciente” do desenvolvimento económico, é assegurada pelo partido, por via do plano. O plano é de resto defendido como a forma de superar a anarquia da produção própria do capitalismo e do mercado para evitar as crises e estimular um crescimento rápido, capaz de superar os níveis de desenvolvimento do capitalismo. Bukharine, como de resto todo o bolchevismo, nunca discute o fulcro da criação de riqueza e de quem efectivamente controla esse valor acrescentado que a força de trabalho humano consegue gerar. O bolchevismo, neste seu epílogo teórico e histórico, falha em termos marxistas na avaliação do carácter do modo de produção estatal construído pelo Estalinismo na URSS, facilitado ou forçadamente imposto como saída necessária perante as dificuldades de política económica.

O fim do bolchevismo involuntariamente assinado por Bukharine é, precisamente, a ponta por onde os actuais porta-bandeira do comunismo devem começar por discutir com vista a retomar a ofensiva. A URSS nunca se aproximou, excepto em experiências económicas protótipo dos anos 20 e de sectores da agricultura, de qualquer ideia de organização de produtores-livres associados. E essa é a questão que os fundadores da URSS não conseguiram nunca superar, aceitando ao contrário um evolucionismo sem alternativa aparente à criação de um Estado extractor e apropriador de sobre-produto. Não conseguiram, apesar da sua heroicidade e generosidade, edificar vantajosamente uma economia onde a soberania sobre esse mesmo sobre-produto passasse ao controlo dos próprios produtores. Acabando por conceder que essa evolução forçada pela necessidade económica supostamente incontornável seria ainda assim matizada pelo sonho do “amanhã que canta”. É porém uma evidência que a descodificação do presente, dos seus equívocos, do que é e poderá ser um modo alternativo de produção, é por aí que o desejo de alcançar um amanhã que cante pode começar a ser efectivamente construído. Porque nós, os que hoje transportamos o estandarte vermelho, tal como os bolcheviques, desejamos, efectivamente, “um amanhã que cante” segundo os versos de Caetano Veloso. Em resumo, o texto de Bukharine vale sobretudo por constituir uma constatação dos limites da visão bolchevique o que, não parecendo muito, se ajudar na consciencialização de quais são os problemas que temos de resolver, já será uma enorme contribuição para a renovação do projecto comunista. Não tenhamos ilusões, com os processos de Moscovo, ficou interrompida toda a discussão e prospecção do futuro no campo comunista. Com a excepção de louváveis, muito importantes e cada vez mais numerosas contribuições de índole académica. Retomar a discussão é pois a tarefa do presente suscitada que é pela leitura de “O Socialismo e a sua Cultura”.

Nota final. O livro foi aparentemente escrito com uma forte expectativa de publicação, “mesmo que fosse por pseudónimo”, segundo carta de Bukharine a Estaline. Teriam assim justificação as genuflexões que em vários momentos Bukharine concede a Estaline, segundo o estilo da época, conhecido depois como culto da personalidade. Bukharine recorre ainda, uma ou outra vez, à legitimação da retórica oficial contra Trotsky e o trotskismo como tentativa de ganhar os favores do ditador. Esse comportamento mostra que Bukharine teve opções e percursos discutíveis. Segundo os editores, tais subordinações eram motivadas pelo desejo central de ver publicado o livro. É possível pelo contrário que reflectissem a enorme dificuldade em apreender o significado profundo de tudo o que se estava a passar – incapacidade de resto comum a todo o movimento comunista, que aliás ainda hoje perdura. Perante algo que não se compreendia, acerca do qual uma coerente teoria não era possível ser gizada, surgiam e surgiram, naturalmente, o instinto e o ziguezaque como orientadores das respostas. Nem sempre com acerto como parece visível nestes casos pontuais. O que é certo e deve ser relevado, é o facto de Bukharine ter lutado até ao fim pelas suas ideias e pela sua vida e a vida da sua família, em condições de extrema adversidade. O seu sacrifício e da geração de ouro do bolchevismo são a expressão mais genuína de que o comunismo deve ser absolvido da degeneração estalinista, contra ela lutou desde o primeiro dia e os seus seguidores foram os mártires maiores dessa oposição. O sacrifício do bolchevismo e dos bolchevistas é a razão e a inspiração para enfrentarmos com sucesso a tarefa da renovação comunista.

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