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Subject: A queda da União Soviética


Author:
Fidel Castro
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Date Posted: 16/12/06 11:03:38

A queda da União Soviética
O desastre ecológico – Estado das infra-estruturas –
Mediocridade informática – Reino das máfias – Viver sem a URSS
por Fidel Castro,
Entrevistado por Ignacio Ramonet [*]

Clique a imagem para encomendar. Após a queda, em 1991, da União Soviética e de outros países do Leste, descobriram-se coisas terríveis. Confirmou-se a existência de um enorme desastre ecológico, verificou-se que as infra-estruturas se encontravam num estado calamitoso. A medicina, segundo me dizia o Comandante, não funcionava…
Funcionava com deficiências, mas era dez vezes melhor do que agora.

Descobriu-se que havia dificuldades terríveis na vida quotidiana e surgiu também uma espécie de reino das máfias, uma corrupção astronómica. Os próprios quadros do Partido apoderaram-se de uma grande parte da riqueza nacional. Não há dúvida: setenta anos de socialismo soviético não permitiram construir um "homem novo". Todas estas revelações surpreenderam-no? Afectaram as suas convicções?
Vou responder-lhe. Você expôs uma lista de questões: algumas já eram conhecidas, mas muitas conheceram-se depois. Há que analisá-las bem.
Havia muitas coisas com as quais eu não concordava. Por exemplo, quando ia a Moscovo, queixava-me porque me punham à perna um pequeno quadro do Partido, o qual me acompanhava a todo o lado, convertendo-me praticamente numa propriedade sua. Via pequenas misérias, invejas, egoísmos. Esse tipo de coisas existiam, mas também se vêem em toda a parte, mas num grau muito maior nas sociedades capitalistas. Confesso que havia esses problemas, mas em grau muito menor do que noutras paragens.
Vamos vê-las uma por uma. Diga a primeira.

O desastre ecológico.
É verdade. Não se sabia que no mundo havia um desastre ecológico, e pode dizer-se que o Ocidente o descobriu primeiro. Marx pensava que o limite do desenvolvimento das riquezas estava no sistema social e não nos recursos naturais, como hoje se sabe.
Os soviéticos não conheciam o perigo ecológico, e num território gigantesco como o da URSS talvez fosse difícil defender-se dele, mas as catástrofes ecológicas que lá se descobriram são iguais às da Europa e dos Estados Unidos.

E Tchernobil? [1]
O desastre de Tchernobil, a única tragédia ocorrida com os tipos de reactores que não são a água, mas de grafite, causou efectivamente danos tremendos. Antes dele, porém, houve outros desastres ecológicos: a destruição que se verificou no México, na América Central, na América do Sul. Quanto à selva do Amazonas há uma disputa para se ver como será possível salvá-la. A devastação ecológica é universal, não se pode atribuí-la realmente à URSS.

Mas falemos, por exemplo, do mar de Aral. Os soviéticos tomaram decisões para desviar os rios e o mar de Aral está a desaparecer, por razões de gigantismo produtivista.
Mas não é um problema exclusivo. Discutiu-se muito, desde Khruchtchev até Brejnev e outros. Queriam produzir. Por exemplo, no Kazaquistão desenvolveram a produção de trigo e todos procuraram incrementar a produção. Também quiseram cultivar as chamadas estepes da fome no Usbequistão – eu estive lá, e então trouxeram água de uns rios que vinham das montanhas. Produziam milhões de toneladas de algodão. Penso que foi uma aplicação incorrecta da técnica. Não sabiam, nem sequer suspeitavam, que julgando fazer uma grande coisa, podiam provocar um enorme desastre ecológico. Lembro-me de que Khruchtchev me falou desse tipo de plano, a conquista de novas terras, a superprodução. Estavam empenhados em fazer as mesmas coisas que os Estados Unidos. E enquanto prosperava a agricultura, a sementeira de regadio, etc., aumentavam os problemas dos resíduos salinos.
Também nós estamos a descobrir certas coisas. A Revolução utilizou herbicidas: quando a produção de açúcar se elevou a 8 milhões de toneladas, se não se recorresse a esses produtos químicos num momento dado, não podia haver indústria agrícola. Quanto aos fertilizantes, bom, o fertilizante num dado momento salvou a humanidade, e em geral a humanidade não poderia sequer pensar em alimentar mais de 6 500 milhões de habitantes, permanecendo grande parte, desnutrido e faminto, o Terceiro Mundo. Contudo, recordo um livro de Voisin [2] que se intitulava Hierba, Suelo y Cáncer (Erva, Solo e Cancro). Analisava o efeito do potássio no desenvolvimento de determinados cancros – li muitos desses livros, tinha um interesse especial pela agricultura, o perigo do excesso de potássio. Os tubérculos em geral precisam dele: para a bananeira ou a cana-de-açúcar aplicam-se o nitrogénio, o fósforo e o potássio.
Há uma série de produções de alimentos, entre eles os cereais, que precisam dos três elementos.
Hoje conhecem-se muitos efeitos indesejáveis e antes inacreditáveis do abuso dos fertilizantes e dos herbicidas. Rachel Carson escreveu The Silent Spring (A Primavera Silenciosa), que muito me ensinou. Hoje estudam-se os genes. Mas, há vinte anos, destes últimos pouco se sabia, a genética regia-se pelas leis de Mendel, aquelas descobertas a partir das ervilhas ajudaram muitíssimo a genética tradicional mediante a combinação de cromossomas e genes. Não se conhecia a engenharia genética, não se haviam produzido transferências de genes de uma célula para outra. Nós trabalhamos muito a genética tradicional e depois vimos as possibilidades da engenharia genética, a qual também desenvolvemos. Hoje dispões de medicamentos produzidos por esses métodos, vacinas ou fármacos que não têm origem natural. As de origem natural podem estar contaminadas com outros elementos, pelo que fazer uma vacina sintética dá muito mais segurança do que uma vacina natural.
Houve um tempo em que pareceu que a ciência resolveria tudo. Hoje descobrimos que não é assim. O desafio torna-se mais difícil porque também não podemos renunciar a ela. A ciência terá de resolver muitos problemas que ela mesma cria. Salvar a espécie será uma tarefa de titãs, mas nunca será possível através de sistemas económicos e sociais em que só o lucro e a publicidade decidam.
Ou seja, trata-se de questões muito complexas e profundas não resolvidas pelo homem, e das quais não se pode culpar, longe disso, a antiga URSS.

O estado calamitoso das infra-estruturas, das vias de comunicação, o caminho-de-ferro, as estradas, o telefone, a electricidade, tudo em péssimo estado.
Eu não tenho qualquer interesse em defender seja o que for de mau que os soviéticos tenham feito, que isto fique bem claro. Cheguei a pensar, e penso ainda, que sem a industrialização acelerada à qual esse país se viu obrigado, em grande parte por culpa do Ocidente, que o bloqueou, o invadiu e lhe impôs a guerra, a URSS não se teria salvo da bota nazi, teria sido derrotada. Eles, em plena guerra, foram capazes de transportar fábricas, implantá-las em terrenos cobertos de neve e fazê-las produzir quando ainda lhes faltava o tecto. Foram protagonistas de uma enorme proeza, uma das mais meritórias daquela guerra, onde se cometeram tantos erros políticos previamente. Aqui se justificam as minhas maiores criticas pelos erros cometidos.
Recordando as nossas relações com eles, que duraram mais de 30 anos até ao colapso, penso que os soviéticos tinham gasolina de sobra, porque a gasolina é o que fica depois de produzir o fuelóleo ( fuel-oil) e o gasóleo para a indústria, os transportes e a agricultura. Eles não desenvolveram uma sociedade consumista, saturada de automóveis particulares e grandes consumidores de gasolina como acontece nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Creio que fizeram muito bem. A minha ideia é que a gasolina sobrava e, na década de 1960, a URSS não teria mercado para ela. Não se encontra outra explicação para o incrível consumo dos motores a gasolina de camiões, camionetas, jipes e automóveis soviéticos. Quem o há-se saber melhor do que nós, que adquirimos dezenas de milhares e, em trinta anos, nunca nos faltou um barco da frota soviética a trazer gasolina? É justo dizer-se que também nunca deixou de chegar um barco com petróleo, fuelóleo ou gasóleo. Os equipamentos com motores diesel eram muito mais eficientes.
Mas, na realidade, tinham atrasos tecnológicos em diversas esferas da economia produtiva, e isso teve o seu preço na luta do socialismo face ao imperialismo e seus aliados. O curioso é que a URSS era o país que mais centros de investigação criou, mais investigações levou a cabo, e, exceptuando a esfera militar, o que menos aplicou na sua própria economia o caudal de invenções que desenvolveu.
As estradas eram estreitas. Talvez por razões de segurança não desenvolveram grandes auto-estradas. Por razões de segurança as suas linhas férreas tinham bitola diferente das da Europa. Neste meio de transporte sim, deram passos assinaláveis em frente. Talvez os seus carros não fossem muito luxuosos, mas o comboio da Sibéria chegava a muitos milhares de quilómetros de distância e o sistema ferroviário, sem dúvida muito mais económico que o transporte rodoviário a grandes distâncias, chegava a todos os cantos daquele imenso país. Os automóveis particulares consomem hoje a maior parte da gasolina que as refinarias produzem. Nos Estados Unidos o consumo diário ultrapassa os 8,5 milhões de barris, algo realmente insustentável e que contribui para o rápido esgotamento das reservas provadas e prováveis de petróleo no mundo.

E nem a informática desenvolveram, apesar de terem milhares de engenheiros, o que à partida lhes dava uma elevada capacidade. Como explica isto?
Isso não tem justificação, é falta de visão. É inacreditável. Os ianques, pelo contrário, trataram de a desenvolver a toda a velocidade. Em algumas coisas, os soviéticos foram medíocres; porém, isso não acontecia nas investigações, o problema estava na sua aplicação. Eles tinham mais investigação, chegaram ao espaço antes dos outros, e não se chega ao espaço sem informática.

Esse erro foi evitado em Cuba? Preocupam-se com o desenvolvimento da informática?
No nosso país houve momentos em que não se ensinava informática nem mesmo nas universidades. Avançámos a pouco e pouco, começando exactamente pelas universidades. Depois criámos 170 clubes juvenis de informática, e não há muito elevámos esse número a 300, com o dobro dos computadores em cada clube. O essencial é que hoje, no nosso país, o ensino da informática começa na idade pré-escolar. Cem por cento das crianças e dos jovens, desde o jardim-escola até à universidade, contam com os seus laboratórios de informática, e descobrimos as possibilidades enormes que isso nos oferece. Também se utilizam exaustivamente os meios audiovisuais na educação de crianças, adolescentes, jovens de toda a população. Para o uso destas técnicas, os painéis solares, com um custo e gasto mínimos, fornecem a electricidade necessária em cem por cento das escolas rurais que dela careciam.
Já entrámos na etapa de massificação e trabalhamos intensamente noutras áreas da informática: estão a formar-se dezenas de milhares de programadores e desenhadores de programas. E criámos – já vai no quinto curso –, uma Universidade das Ciências Informáticas, com alunos seleccionados entre os melhores de todo o país, na qual ingressam dois mil alunos por ano.

Ainda a URSS. Quando a União Soviética se extinguiu, surgiu uma espécie de reino de máfias por todo o lado. Descobriu-se uma corrupção gigantesca: os soviéticos não tinham conseguido inocular valores éticos, mas, pelo contrário, havia-se criado uma espécie de corrupção generalizada.
Ora vejamos. O capitalismo é um criador de todo o tipo de germes. Quem inventou a máfia foi o capitalismo. Todos esses germes de corrupção estão presentes. No socialismo também os há, porque as pessoas têm necessidades, tu tens de semear valores, promovê-los. Nós lutámos – e continuamos ainda hoje a lutar, e muito –, porque uma revolução começa acabando com todas as leis. Recordo-me que descobrimos a existência de uma cultura dos ricos e uma cultura dos pobres. A dos ricos, muito decentes: compro, pago. A dos pobres: como posso conseguir isto aqui? Como vou roubar o rico ou seja lá quem for?
Muitas famílias humildes, boas, patriotas, diziam ao filho que trabalhava por exemplo na hotelaria: "Escuta, traz-me um lençol, traz-me uma almofada, traz-me isto, traz-me aquilo". Estas atitudes nascem da cultura da pobreza, e quando se fazem as mudanças sociais para transformar tudo, os hábitos perduram durante muito tempo.
Se este socialismo desaparecesse de Cuba, por termos seguido os conselhos de Felipe González [3] e de toda essa gente, também aqui, e em altíssimo grau, teriam desabrochado as máfias, e todo o pior do capitalismo, incluindo drogas e crimes. Há sectores completos da nossa sociedade que ainda não conseguimos mudar, e o entusiasmo que temos é que vemos com toda a clareza como transformá-los progressivamente, mediante uma verdadeira revolução educacional.
Também na União Soviética isso deve ter ocorrido. Não sei realmente em que grau existiu na URSS isso que você diz, porque a URSS tinha bastantes escolas, desenvolviam profusamente as investigações, as universidades tinham um bom nível.
Seja como for, o homem é o homem, não podemos idealizá-lo. Felizmente é grande a minha confiança: penso que este ser humano, com todos os seus defeitos e limitações, tem capacidades suficientes para se preservar e inteligência bastante para se melhorar. Se eu não acreditasse nisso, não teria uma razão para lutar até à morte. Diria: "Olhem, isto não tem remédio, isto vai falhar de qualquer maneira". De modo que tu podes fazer todas as comparações possíveis, e creio que uma razão ou outra podem explicar o que parece não ter justificação. Há fenómenos que são de outra natureza.

Vocês não realizaram em Cuba aquilo a que, no tempo de Gorbatchev, se deu o nome de perestroika, revisão geral do funcionamento do sistema. Acha que aqui não era necessária uma perestróica e que isso ajudou a preservar a Revolução?
O que lhe posso dizer é que, na União Soviética, ocorreram fenómenos históricos que aqui não se deram. Aqui não houve estalinismo; no nosso país nunca se conheceu um fenómeno desse carácter: abuso de poder, culto da personalidade, estátuas, etc. Aqui, logo no início da Revolução, foi promulgada uma lei que proibia que se desse o nome de dirigentes vivos a uma rua, a uma obra, ou que se lhes erigisse uma estátua. Aqui não há retratos oficiais nas repartições públicas: sempre fomos firmemente contra o culto da personalidade. Tal culto não passou por aqui.
Nós não temos de rectificar erros que se cometeram noutros lados. Também não houve colectivização forçada de terras, foi coisa que nunca aconteceu no nosso país. Sempre respeitámos um princípio: a construção do socialismo é tarefa de homens livres que queiram construir uma sociedade nova. Não temos razões para rectificar erros que nunca existiram.
Se tivéssemos feito essa perestróica, os norte-americanos estariam felizes, porque, de facto, os soviéticos autodestruíram-se. Se nos tivéssemos dividido em dez fracções e iniciássemos assim uma luta tremenda pelo poder, nesse caso os norte-americanos sentir-se-iam as pessoas mais felizes do planeta e diriam: "Vamos finalmente ver-nos livres da Revolução Cubana". Se nos temos dedicado a fazer reformas desse tipo, que nada têm a ver com as realidades de Cuba, ter-nos-íamos autodestruído. Mas não nos vamos autodestruir, que isso fique muito claro.

Chegou a considerar com interesse os esforços de Gorbatchev para reformar a URSS?
Olhe, eu tinha uma péssima opinião de tudo o que Gorbatchev estava a fazer, num dado momento da sua liderança. Agradou-me no princípio, quando falou de aplicar a ciência à produção, de avançar pelo caminho de uma produção intensiva, apoiado na produtividade do trabalho e não num crescimento extensivo assente em cada vez mais fábricas. Este caminho já se tinha esgotado e havia que seguir pela via da produção intensiva. Mais produtividade e mais produtividade, aplicação intensiva da técnica – ninguém podia discordar disto. Falou também da sua oposição aos ganhos não provenientes do trabalho. Eram palavras de um verdadeiro revolucionário socialista.
Essas foram as primeiras declarações de Gorbatchev, que sempre tiveram a nossa plena concordância, e ele também se opôs ao excesso de consumo de álcool, o que me pareceu muito correcto. Bom, creio que lá não é assim tão fácil lidar com este problema, exigia uma prédica longa, porque os russos sabem há muito tempo como se produz a vodca, a aguardente, num qualquer alambique. Até conversei com ele sobre este tema, essas coisas interessavam-me.
Eu explicava-lhe também a necessidade de a URSS ter outros métodos nas relações com os restantes partidos, de ser mais aberta nas suas relações, não só com os partidos comunistas, mas também com as forças de esquerda e com todas as forças progressistas.

Eles tinham com os demais partidos comunistas pró-soviéticos uma atitude bastante hegemónica, ou não?
Eu não sou dos que se põem a criticar os personagens históricos satanizados pela reacção mundial para agradar aos burgueses e aos imperialistas. Mas não vou cometer a tontice de não me atrever a dizer algo que tenho o dever de dizer. Na União Soviética, pelas tradições de governo absoluto, mentalidade hierárquica, cultura feudal ou o que quer que seja, criou-se a tendência para o abuso de poder e, em especial, o hábito de impor a autoridade de um país, de um Estado, de um partido hegemónico, aos outros países e partidos.
Mantivemos relações, durante mais de quarenta anos, com o movimento revolucionário na América Latina, e relações de grande proximidade. Nunca nos ocorreu dizer a quem quer que fosse o que devia fazer. Íamos descobrindo, além disso, o zelo com que cada movimento revolucionário defende os seus direitos e as suas prerrogativas. Recordo momentos cruciais: quando a URSS desabou, muita gente ficou só, e entre essa gente estávamos nós, os revolucionários cubanos. Mas nós sabíamos o que devíamos fazer. Os demais movimentos revolucionários travavam em muitos lados a sua luta. Não vou dizer quais, não vou dizer quem; mas tratava-se de movimentos muito sérios. Perante aquela situação desesperada, a queda da URSS, perguntaram-nos se deviam continuar a lutar, ou se negociavam com as forças opostas procurando uma paz, mesmo sabendo-se ao que conduziria uma tal paz.
Eu dizia-lhes: "Vocês não nos podem pedir a nossa opinião, a luta é vossa, quem poderá morrer são vocês, não somos nós. Nós sabemos o que estamos dispostos a fazer; mas isso só vocês o podem decidir. Apoiaremos a vossa decisão, seja ela qual for". Ali estava a mais extrema manifestação de respeito pelos demais movimentos. E não na tentativa de impor – na base dos nossos conhecimentos e experiências e do enorme respeito que sentiam pela nossa Revolução – o peso dos nossos pontos de vista. Nesse momento não podíamos pensar nas vantagens ou desvantagens, para Cuba, das decisões que tomassem: "Decidam vocês!". E assim cada um deles, em momentos decisivos, adoptou a sua linha.

Conheceu Boris Ieltsine?
Sim. Conheci Boris Ieltsine, era um destacado secretário do Partido em Moscovo, com muitas e boas ideias: o propósito de dar resposta às necessidades da capital, o desenvolvimento dessa cidade. Eu instei-o convictamente a que preservassem as partes históricas, que as não destruíssem. Ieltsine tinha a ideia de criar estufas para abastecer Moscovo. Era muito crítico e muito exigente com todos os quadros, de tal modo que publicávamos os discursos de Ieltsine pelo rigor com que criticava deficiências, falhas. E eu disse-lhe: "Cuidem dos edifícios patrimoniais, porque vocês quase fizeram desaparecer a antiga Moscovo, construíram outra". Ele fez escala aqui, quando visitou a Nicarágua, e conversou muito connosco.
Bom, um dia em que eu estava de visita a Moscovo, põem o Ieltsine como meu anfitrião especial, e estou eu a falar-lhe de algumas coisas, de como é incompreensível que alguns dos produtos mantenham os mesmos preços, desde há 40 anos, pois escasseavam e davam lugar a alguns problemas. O caviar tinha o mesmo preço que na época de Estaline. Digo-lhe: “Ainda por cima vocês mantêm alguns produtos tão baratos que os desperdiçam. O pão está demasiado barato – dizia-lhe eu –, e muita gente compra pão para produzir frango com esse pão e vendê-lo no "mercado livre camponês". Eu via muitos gastos, muitos desses produtos superbaratos, antieconómicos, quando tantas coisas haviam mudado no país e no mundo, a massa monetária tinha-se multiplicado, e às vezes não eram bens essenciais. Prestava-se a todo o tipo de dissipação e desvio de recursos.
Havia ali uma contradição: aquele mercado livre camponês que vendia ao preço que lhe dava na gana. E também a teoria – os norte-americanos usavam esse argumento em defesa da propriedade privada – de que uma altíssima percentagem dos alimentos era produzida pelo kolkosiano em pequenas parcelas; não sei as percentagens exactas, mas o que eles não diziam é que o kolkosiano produzia ovos baratos e carne barata porque utilizava os cereais da produção sovkosiana ou estatal, que era muito barata, e você pode criar – numa área de 15 por 15 metros – duas mil galinhas, três mil galinhas, mesmo cinco mil galinhas. E até várias vacas de alta produção.

Vocês experimentaram isso aqui?
Sim. Uma vez fizemos uma experiência, utilizando a luz eléctrica, sobre a quantidade de leite que se podia produzir por metro quadrado e a quantidade de quilos de forragem que se podia produzir por metro quadrado. Fizemos essa experiência, que tinha a ver com a energia que se gastava a partir de uma superfície de um hectare; você podia em teoria construir na cidade um edifício de vinte andares, e esse hectare. Se se dispusesse de luz, água, fertilizantes e uma ou várias vacas de alta produção. Não se sabe o que dá uma vaca! A vaca alimenta-se de vegetais, quase sem grãos, dos quais surgem suculentos gomos verdes fertilizados, ricos em proteínas. Nós tivemos de estudar a sério tais problemas nos primeiros anos da Revolução. De modo que falávamos sobre esses temas – Ieltsine e eu. Quando ele ainda não era presidente da Rússia, falávamos de tudo.

De como funcionavam as coisas na União Soviética?
Repare, uma viagem no carro eléctrico custava quatro centavos, o metro creio que cinco centavos, isso dava lugar a que as pessoas viajassem demasiado de um lado para outro de Moscovo. Eu explicava a Ieltsine o que se passava connosco em relação a isso, porque ele me disse num dado momento: "Penso que os transportes deviam ser gratuitos". E eu respondi-lhe com o conselho de que os transportes não fossem gratuitos: argumentei que deviam ter um preço razoável, nem que fosse somente para poupar o número de viagens não necessárias que as pessoas fazem com o transporte gratuito. Porque, uma vez aqui, em Cuba, entregámos a um nosso companheiro que era secretário regional do Partido – quando existia a região, que era menos que uma província e mais do que um município –, conjunto de autocarros e ele, sem consultar ninguém, estabeleceu o transporte intermunicipal gratuito. Coisas que a gente fazia. Pôs grátis o transporte, por sua conta e, claro, isso custou-lhe uma discussão tremenda e uma duríssima crítica que eu lhe fiz.
Os transportes eram aqui quase gratuitos, e as pessoas, em vez de caminharem dez quarteirões, sete quarteirões, tomavam o autocarro para fazer esse percurso, normalmente nem o pagavam, não dava tempo, ou pagavam o correspondente a 700 metros, 800 metros, o que multiplica o consumo desnecessário. Tive isto presente na conversa com Ieltsine – por isso o aconselhei a não tornar grátis os transportes e outros serviços similares, em nada parecidos com a educação e a saúde. E sei também que havia muitas coisas quase gratuitas porque os preços eram inamovíveis. O certo é que durante aquela visita me encontrei várias vezes com Ieltsine, e realmente naquele tempo tínhamo-lo em grande consideração pelo seu radicalismo. Tudo isto se passou bastante tempo antes da catástrofe da desintegração.

Como eram as suas relações com Gorbatchev?
Acontecia o mesmo. Houve boas relações com Gorbatchev. O Raúl conhecia-o há vários anos, desde uma visita que fez à União Soviética. Tinham relações de amizade. Eu falei muito com ele, conheci-o, conversámos com frequência. Tratava-se de um homem muito inteligente, essa era uma das suas características. Connosco foi realmente muito amistoso, portou-se como amigo, e era visível o seu respeito pela Revolução Cubana. Enquanto exerceu o poder na União Soviética fez todo o possível para não prejudicar os interesses de Cuba e as relações positivas com o nosso país. Um homem com boas intenções, porque não tenho dúvidas de que Gorbatchev tinha a intenção de lutar por um aperfeiçoamento do socialismo, não ponho isso em causa.
Mas não conseguiu encontrar soluções para os grandes problemas que o seu país enfrentava. Desempenhou, indiscutivelmente, um papel importante nos fenómenos que se desencadearam na União Soviética e na derrocada posterior. Não conseguiu evitar a desintegração da União Soviética, não a soube preservar como grande país e como grande potência. Pelo contrário, os seus erros e as suas debilidades ulteriores contribuíram para isso. Nós sugerimos-lhe, como disse, que para os congressos, para as efemérides que eles organizavam, convidasse não só os partidos comunistas mas também outras forças de esquerda e progressistas. Sofremos os efeitos de um furacão, telefonou-nos e enviou-nos uma ajuda, tudo muito bem. Fizeram um plano inicial, que era bom, já o disse, na base das ideias relativas à produção intensiva que era preciso desenvolver.
Depois começaram as concessões na esfera da política internacional, as concessões no armamento estratégico, em tudo, e um dia Gorbatchev até pediu a assessoria de Felipe González e do PSOE. Contou-mo ele mesmo, creio que num dos parágrafos de uma carta. A sua situação era já muito complicada. Li-o com espanto, mas sem surpresa. Resignei-me à realidade de que o socialismo na URSS havia retrocedido cem anos.

Em algum momento consideraram que a vossa segurança era garantida pelo poderio militar da União Soviética?
Nunca. Em determinado momento chegámos à convicção de que, se fôssemos atacados directamente pelos Estados Unidos, os soviéticos nunca lutariam por nós. Nem podíamos pedir que o fizessem. Com o desenvolvimento das tecnologias modernas, era ingénuo pensar, ou pedir, ou esperar que aquela potência lutasse contra os Estados Unidos, se estes interviessem na ilhazita que estava aqui a 90 milhas do território norte-americano.
E chegámos à convicção total de que esse apoio nunca viria. Mais ainda: perguntámo-lo directamente aos soviéticos, vários anos antes do desaparecimento da URSS. "Digam-no com franqueza". "Não!" – responderam. Sabíamos que era isso que iam responder. E então, mais do que nunca, acelerámos o desenvolvimento da nossa concepção e aperfeiçoámos as ideias tácticas e estratégicas com as quais esta Revolução triunfou e venceu mesmo no terreno militar um exército cem vezes mais numeroso em homens e não se sabe quantas vezes mais poderoso em armas. Depois dessa resposta, arreigámo-nos mais do que nunca nas nossas concepções, aprofundámo-las e fortalecemo-nos a um nível tal que nos permite afirmar hoje que este país é militarmente invulnerável – mas não o é em virtude de armas de destruição maciça.

Quando a URSS se desmoronou, muitos previram também o desabamento da Revolução Cubana. Como é que resistiram?
Quando a URSS e o campo socialista desapareceram, ninguém apostava um cêntimo na sobrevivência da Revolução Cubana.
O país sofreu um golpe brutal quando, de um dia para o outro, ruiu a grande potência e nos deixou sós, sozinhitos, e perdemos todos os mercados para o açúcar e deixámos de receber víveres, combustível, até a madeira para dar uma sepultura cristã aos nossos mortos. Ficámos sem combustível de um dia para o outro, sem matérias-primas, sem alimentos, sem artigos de higiene, sem nada. E todos pensavam: "Isto vai cair" – e alguns idiotas continuam a acreditar que isto vai ruir e que, se não ruir agora, desabará depois. Quanto mais ilusões eles tiverem e mais pensarem nisso, mais devemos nós pensar, e mais devemos nós tirar as conclusões, para que jamais a derrota possa dominar este povo glorioso.
Os Estados Unidos apertaram ainda mais o bloqueio. Surgiram as leis Torricelli [4] e Helms-Burton [5] , ambas de carácter extraterritorial. Os nossos mercados e fornecedores fundamentais desapareceram abruptamente. O consumo de calorias e proteínas reduziu-se quase a metade. O país resistiu e avançou consideravelmente no campo social. Hoje já recuperou grande parte das suas necessidades nutritivas e avança aceleradamente noutros campos. Mesmo nessas condições, a obra realizada e a consciência criada durante anos operaram o milagre. Porque resistimos? Porque a Revolução contou sempre, conta e contará cada vez mais com o apoio do povo, um povo inteligente, cada vez mais unido, mais culto e mais combativo.
NOTAS
1- A 26 de Abril de 1986, na central nuclear de Tchernobil, a norte da Ucrânia e a só 12 quilómetros da fronteira com a Bielorússia, aconteceu o maior desastre nuclear da história. Inicialmente, as autoridades ocultaram da população e do mundo as verdadeiras dimensões da catástrofe, que causou centenas de mortos e dezenas de milhares de pessoas ficaram contaminadas por matérias radiactivas.
2- André Voisin (1903-1964), engenheiro-agrónomo francês, autor de Hierba, Suelo y Cáncer, Tecnos, Madrid, 1961.
3- Felipe Gonzáles (n. 1942), dirigente do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), foi presidente do Governo de Espanha, de 1982 a 1996.
4- Promulgada em 1992, a Lei Torricelli estabelece duas sanções fundamentais: 1) proibir o comércio de filiais de companhais norte-americanas estabelecidas em terceiros países com Cuba; 2) proibir os barcos que entrem em portos cubanos, com fins comerciais, de atracarem em portos dos Estados Unidos ou em portos de países que sejam possessões norte-americanas, durante os 180 dias seguintes à data em que abandonaram um porto cubano.
5- Jessie Helms, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros do Senado e senador da Carolina do Norte, e Dan Burton, representante de Indiana na Câmara de Representantes, apresentaram uma lei – aprovada pelo presidente Bill Clinton a 12 de Março de 1996 – sobre o "direito das pessoas afectadas pela Revolução Cubana" e sobre as "medidas a adoptar contra aqueles que negoceiam com Cuba". Consulte-se: www.cubavsbloqueo.cu/especiales/lhb/ley_hb_intro.htm .

[*] Capítulo 17 de Fidel Castro - Biografia a duas vozes, de Ignacio Ramonet, Campo das Letras , Porto, 2006, 632 pgs., ISBN 989-625-120-7.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

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